...Não foi do dia para a noite que a espécie chegou a esse nível bestial de organização. Fez-se a arma, a roupa, o sapato, o chapéu, o relógio, as tesouras, os óculos, o remédio, a comida em caixas, as malas, os semáforos, os meios de transporte para poupar as pernas e os tendões. Fez-se a casa e depois fizeram com que ela subisse na vertical, e aí precisou inventar as escadas, as janelas, os caibros, os telhados. Os violinos, as cordas, as almas. Vieram as xícaras e os líquidos feitos de raízes e de sementes, o açúcar e alguns animais embalsamados para o acompanhamento. A escrita, o livro, o taxi, o relógio e as horas, o salto alto e as meias-liga para criar também a ilusão. Fez-se o berço e a lápide para o cadáver, a bicicleta, a agulha para furar a língua e as orelhas. A gravata, o pente, a umbrela. E fez-se o frio e o fogo que precisou ser condensado e domado. Surgiram os idiomas e as ruas, as moedas e os bancos para armazenar o dinheiro. Portsoken Street diz a placa pregada no cimento. Band-aid para os calos e capas para a chuva que bate na vidraça. O vidro, o cigarro chegando aos lábios, um véu sobre a cabeça cheia de buracos. A mão administrando tudo e nos seus dedos se introduziram anéis de diamantes. A chave presa a uma corrente, o pescoço cheio de penduricalhos. A fala, a letra, a pizza exposta no mesmo andar do campanário. 122. Fez-se os números, deu-se nome aos porcos e placas aos taxis. Pedestrians look both ways em letras brancas e fundo vermelho. Um pingo fura a vidraça e transborda o capuchino. Um abatjour e o tubo de alumínio que o suporta. Desvendou-se o pulmão e a pneumonia. As horas, o dedo indicador em riste e o riso de dois bêbados. Look rigth escrito no concreto do piso. Look. Os olhos e os colírios para combater as poeiras glaciais, as coxas com suas varizes para correr da chuva e para proteger a vulva. As gotas descendo pela careca e contraindo a massa no interior do crânio. Caim descendo as escadarias da toalete para ladies. O farol e sua linguagem, o volante do lado oposto ao do coração. A disritmia, a hipomania e a mania de grandeza. E fez-se a anestesia. A seringa a ampola e a veia. Um, dois três, quatro e pronto: decolamos no nada. O salto para o nada que é o sono multiplicado por um bilhão. O “Eu”, a “Personalidade”, a “Alma”, o “Ser”, o ‘Corpo”, as “Crenças”, as “Prepotências” nada pode competir com uma simples ampola de três centímetros. E o veículo mais potente de todos é a maca, com a leveza de suas rodas deslizando no concreto de nuvens... Uma buzina. Londres que se espreme sobre si mesma. Fez-se também o ziguezague de olhos e de raças. No mapa a conexão entre os vultos que se encontram para rir, rir de que caveira estressada? O paletó indo sozinho para o escritório, no bolso de dentro a poção pessoal de veneno. Foi-se a chuva, fez-se o sol. Taxi! Palavra enigmática. Voltou a chuva! A nuca encostada na cripta. As pilhas já estão pela metade. Fez-se a esquina e o cruzamento, os pacotes para transportar o pão miserável de todos os dias. Next please! A voz da moça do café que é de outra tribo. Tacapes! Setas envenenadas! Os cílios de duas polegadas. Um dia, certamente, ela trocará o next pelo last. Um japonês pisando numa poça de água, cada um tem a sua tsunami. Os desníveis existem apesar de ter-se feito os centímetros e a boca de cristal. Next please! O next sou eu, minha câmera digital e minha segunda caneca de café. Next! Next please! Next um caralho! Amanhã será last! No meio de todos esses objetos, essas coisas, esses instrumentos, esses signos, esses significantes, essas senhas e marcas e álibis, o sistema, fantasma e onipresente que não é um ser com dna, se parece mais a uma serpente de aço, sem núcleo cercada de serviçais e que vai se esticando, esticando, esticando. Os lacáios morrem e passam enquanto o sistema, com um disco lunar sobre a cabeça vai se desenvolvendo como uma doença progressiva, uma verruga, um tumor no interior da alma. São esses imensos blocos de concreto cheios de bandeiras, brasões e de códigos, cada vez mais altos, densos e sem identidade. Onde é a entrada moço? Quem esteve aqui? Quem fez isto ou aquilo? A ordem veio de onde? Tudo há dois mil anos atrás? Não há registro do essencial, só a visão pueril fica nos arquivos de ferro ou nos discos rígidos para dar o que fazer aos professores de história e de “humanidades”. As catedrais, as masmorras, o cheiro da camareira tcheca, os bancos, a filosofia e a ditadura dos mercados, a terra inteira sendo devorada por seus vermes. A música do congo fazendo vibrar minhas células tupinambás. Aqui nos “céus” de Londres um trânsito intenso de aviões que vão para onde? Dá para adivinhar o que cada passageiro leva na mala, nos bolsos e no cérebro e a quantas anda sua ansiedade, o que fará em seu destino, como e quando voltará. E depois desses serão outros como eles, com as mesmas coisas nos bolsos, nas malas e nos cérebros. Há uma indústria imensa de aviões, de malas, de fobias e de pessoas funcionando a todo vapor, e tudo para seguir girando na cegueira e ao redor do essencial, sem a coragem radical para o pouso definitivo. Hare hare, krisna hare!!! Lá vão sete ou oito sujeitos quase hermafroditas vestidos de rosa e saltitantes, rebolando e tocando sininhos por Piccadilly... Krisna, Krisna, Krisna hare. Mas, cadê o Krisna? Atravessam a avenida pacificamente sabendo que mais lá na frente vão encontrar-se com os da Jihad Islâmica, e que mais na frente ainda se juntarão aos da Opus Dei, e mais adiante ainda aos Filhos de Jeová, aos do Reino dos últimos dias, aos mórmons, aos Filhos de Maria e com outros também temerosos do demônio. Aleluia! Aleluia! que lá vem agora uma manifestação dos monarquistas, outra dos democratas, outra dos republicanos, outra dos socialistas, outra dos ditadores esclarecidos e várias dos pseudo libertários de todo o orbe. Não imaginam que de um janelão de mármore da City um big brother sóbrio e entediado assiste a tudo, e que só ele sabe até onde e até quando essa palhaçada "holistica" toda deve e pode durar... A rua ainda está lá. O paredão, o raio, gente de todo o zodíaco, a mulher que se agarra ao guarda-chuva. Next please! Os badalos de um sino, o relógio, a hora, um anônimo que menciona a meretriz da Babilônia e a errância intemporal. Alguém executa no violino Meditação, da Ópera Thais enquanto Caim cobre a cabeça com um chapéu de colono escocês e se embrenha no meio da tempestade resmungando esta frase demoníaca de Rimbaudt: Tenho a idolatria e o amor do sacrilégio; - oh! Todos os vícios, cólera, luxúria, - magnífica luxúria – e principalmente a mentira e a preguiça”. (Fragmento do livro: Breviário de errância – filosofando com a borduna de Caim – que será editado e vendido em breve nos botecos da urbe).
Fala Chacal,
ResponderExcluirenfim verei teus uivos em papel novamente!
Abraços,
J.M.
Me envie o convite deste belo "funeral"!
Aguardo.