domingo, 27 de julho de 2008

Dialética da natureza


No princípio, sempre que passeava com meu cachorro pelas entre quadras ficava um pouco intimidado ao ver os donos de outros animais levando luvas e um saco plástico com os quais recolhiam obsessivamente seus excrementos. Aquilo sim era um exemplo de cidadania - murmurava sempre o porteiro do prédio vizinho e quando eu lhe dava ouvidos mais do que devia, descambava a falar que na Alemanha a multa para quem deixasse uma cagada na grama era de duzentos euros. Só comecei a ficar mais relaxado e ter uma visão mais autêntica sobre minha pseudo-negligência quando percebi que atrás de meu cachorro se formava diariamente uma fila imensa de pássaros: bentevis, rolinhas, joão-de-barro, pardais, sabiás e até mesmo um pica-pau daqueles de peito amarelo e que todos se digladiavam vorazes para banquetear aqueles biscoitos fumegantes que meu lhasa ia soltando pelo caminho. Ora! A partir daí foi fácil para atingir o insight que me faltava. Eu e meu cão é que éramos os verdadeiros cidadãos! A dupla politicamente correta! Nós é que estávamos sendo úteis, não apenas para com o IBAMA, mas principalmente para com o ecossistema. Pensar com a própria cabeça é dar-se a chance de descobrir que, às vezes, os remédios importunam mais do que a própria doença.

Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 17 de julho de 2008

A ideologia do corpo


Aqueles que sempre tiveram dificuldades para entender por que o pensamento conservador e a prática reacionária vieram se eternizando pelos séculos afora ao chegarem à casa dos sessenta talvez comecem a desvendar esse mistério: É que o corpo é reacionário! A pressão alta, a taquicardia, a depressão, o diabetes, a cegueira, a surdez, a impotência e as tonturas são manifestações essencialmente antirevolucionárias e podem nocautear até o sujeito mais hedonista e o mais tagarela. O velho que se atrever a fazer um discurso libertário por exemplo - verá sua pressão, ainda ali diante da platéia ir lá para as nuvens; aquele outro que perder uma noite de sono não precisará esperar muito para ter que haver-se com sua disritmia; um charuto fumado apenas pela metade e eis a impressão de que os pulmões se desintegraram; um escorregão no boteco e eis que se despedaçou uma tíbia; um baseado e pronto, a nítida sensação de ter mergulhado no Alzheimer; uma refeição inadequada e eis o desmaio hipoglicêmico; meio copo de vodka e a impressão fulminante de estar com Parkinson; uma semente de cereja na gelatina e eis que se fratura um maxilar; um encontro fortuito com a antiga amante e eis que as armas já não se colocam mais à altura... Os vis patrulhamentos sociais que infestaram o planeta nos últimos tempos (antitabaco, antiálcool, antisexo, antidepressivos, antiterrorismo, antiautomóveis, antipornografia, antifeijoadas, antisol, etc.) e que sempre pareceram moralistas, policialescos e ideológicos eram, na verdade, - para nosso desalento - recomendações estritamente geriátricas.


Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O veneno público e a eutanasia


Finalmente o Tribunal de Milão colocou fim à grotesca situação da mulher que vinha sendo mantida em estado vegetativo há 16 anos. É curioso que o Vaticano continue insistindo em seus argumentos teocráticos e que a eutanásia ainda seja um tabu, logo na Itália, onde sabemos, já no ano 200 o romano Claudius Aelianus mencionava o veneno público que era distribuído pelo senado de Marseille àqueles que, por uma razão convincente, desejassem morrer e o solicitassem. Por outro lado a Cúria Papal tem obrigação de conhecer a tese de Lucaine, segundo a qual, para tornar os homens presos à vida, os deuses lhes ocultam o prazer e as delicias da morte.


Ezio Flavio Bazzo

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Os filhos de Caim


De inicio achamos que o gozo e a satisfação que sentiamos com a prisão dos chefões do mercado financeiro eram provenientes de nossa honradez, de nosso sentimento ético, de nossa equidade moral, de nossa cidadania e mesmo dos resquícios de nossa cristandade. Logo depois chegamos a desconfiar que pudesse estar havendo em nosso íntimo algo nefasto e vil derivado da cobiça (quero ter o que eles têm!). Porém quando fomos vendo as cifras inatingíveis, a beleza daquelas mansões, o brilho daquelas Mercedes e a elegância daqueles ternos - conhecendo a lógica dos juízes e sabendo que ninguém ficará preso coisa nenhuma - não tivemos mais dúvidas de que nosso gozo e de que nosso aprazimento eram de pura inveja (não quero que eles tenham!). Isto prova que uma determinada doença no âmbito do social e do público pode muito bem detonar inesperadamente uma doença igual ou de outra natureza na esfera do privado. Parafraseando a Diderot: está vendo este ovo? É com ele que se derrubam todas as instituições financeiras e todos os covis da terra.

Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A selva é claustrofóbica


A única coisa que sei sobre Ingrid Bittencourt é que ela é autora da frase: A selva é claustrofóbica. Como se seu destino fosse o seqüestro, experimentou-o primeiro por parte dos fora-da-lei e agora pelos gerenciadores da lei. A estandardização de entusiasmo e de pensamento popular, a mesmice das manchetes, a similaridade entre as exclamações das elites e a dos pés-de-chinelo a respeito de seu resgate, antes de um sinal de humanismo é mais um signo da doença e da bovinização globalizada. Um coro evangelizado que é uma autentica advertência da incapacidade social e individual de raciocinar com os próprios miolos e de ver com os próprios olhos, uma subserviência doentia à propaganda e ao discurso dominante. Aquilo que deveria proporcionar uma discussão interdisciplinar e além do bem e do mal (sobre o Estado, as Leis e a megalomania no mundo) se esgota num monólogo tedioso e reacionário de esmoler. Nós que trabalhamos com a doença mental precisamos nos convencer dia após dia de que - como dizia Georges Canguilhem - aprender a curar é conhecer a contradição entre a esperança de um dia e o fracasso do fim, sem perder a esperança.


Ezio Flavio Bazzo