Na semana passada encontrei o mendigo K na portaria do TJDF, conhecido mais por "inferno de pequenas causas". Levava uns papéis enrolados sob o braço e nos olhos toda a cólera do mundo. Ali naquele Juizado ou Fórum de pequenas causas se pode encontrar os mais legítimos representantes do lupemproletariado e pessoas que estão brigando judicialmente durante anos por migalhas, misérias e por assuntos os mais indignos. Duas senhoras de uns cinquenta anos - por exemplo - se enfrentavam pelo desaparecimento de um soutien de um varal coletivo. Um homem de muletas dizia que lhe roubaram a dentadura. Duas jovens, acompanhadas pelos devidos pais queriam provar que ainda levavam o hímem no meio das pernas e etc. Quanto ao mendigo K havia sido convocado lá, por uma das excelências engravatadas, para dar explicações sobre o local de mendicância, já que alguém o havia acusado de ter invadido a área de um colega etc. E todos amontoados numa sala imensa com detectores de metais, guardas, bebedouros, ar condicionado, computadores, todo mundo se chamando de doutor.
Antropologicamente, claro, foi uma "viagem"estar lá, mas como é duro admitir que se faz parte dessa ralé! Desse circo! E dessa condição humana abominável! Depois de estar umas duas horas lá dentro ouvindo falar em petições, audiências, indenizações, e etc, saí para tomar um fôlego e sentei-me num degrau ao lado do mendigo que, com um pequeno pedaço de lápis rabiscava alguma coisa numa espécie de agenda. Como ele sabia que eu frequentava um cardiologista e que havia feito uma ablação me perguntou:
- Ablação? Mas isto não é a retirada do clitóris? Que porra é essa?
Claro que ele se referia à mutilação que sofrem as meninas em alguns países muçulmanos e etc que também é conhecida por ablação.
Coloquei os óculos para ver o que escrevia e ele foi adiantando: estou fazendo uma relação das experiências emocionalmente mais marcantes em minha história de andarilho. Fui lendo, apesar de grande parte dos textos estarem abreviados:
1. A vez que ainda adolescente, fui preso no Paraguay por estar mijando numa pedra que, soube depois, era um monumento pátrio.
2. Os 12 dias no Navio Giulio Cesare, repatriado para o Brasil;
3. Uma sopa de batatas à beira do lago de Titicaca numa noite de Natal;
4 A subida a pé pelo antigo caminho dos Incas até o alto de Machu Pichu;
5. Os anos vividos na Cidade do México. Isla Mujeres, o deserto imenso na rota para os EEUU... A águia com uma serpente no bico pousada sobre um cactus. Los temblores de tierra! O vulcão de Popocatepetl vomitando cinzas... O novo presidente da república gritando pela janela do palácio: Viva México Mierda!
6. A praça Coyoacan e seus vendedores, não muito distante de onde assassinaram a Trotski com uma machadada...
7. A sopa Azteca nas madrugadas...
8. O campus da UNAM... O grupo de voluntários que foi à Nicaragua ajudar a derrubar Somoza...
9. O grupo de anarquistas (desconhecido) que chegou em minha casa quase de madrugada para que eu lhes fizesse um café...
10. A Marie Langer fumando durante as sessões...
11. Os indígenas marchando à noite pela universidade, com tochas acesas... Uma serpente em Chapultepec... Algumas horas perdido no bairro de Chalco e com um carro com placa do Texas... Meu gato parecido a uma pantera...
12. O nascimento de meu filho mexicano... Depois o filho brasileiro...
13. Os hotéis clandestinos nos arredores do Palácio de Belas Artes...
14. As noticias da ditadura no Brasil...
15. Barcelona. O flamenco... El Raval... Na Universidade ou vendendo prata nas calçadas de Ramblas... O chiado da tranvía... O barrio Chino... As exposições de Miró. Um copo de vinho e uma tortilha antes de embarcar no último vagão do trem repleto de ciganos clandestinos...
16. Os Pirineus e as idas à zona franca de Andorra...
17. A neve nas vidraças de um apartamento vagabundo. O frio nas madrugadas...
18. O mar azul lambendo as areias de Ibiza... Formentera...
19. Cioran traduzido e publicado pela Taurus...
20. O repiquetear de uma velha máquina na conclusão de uma tese inútil sobre Wilhelm Reich...
21. Os dias de sol com os filhos às costas... e um pacote de tâmaras recém chegadas da Tunisia...
22. O avião sobrevoando a cidade do Cairo antes do amanhecer...
23. A insônia dentro de um saco de dormir num porão de Jeruzalém...
24. O navio entre a vida e a morte da Ilha de Patmos a uma cidade turca...
25. As quatro portas do Bazar de Istambul...
26. As montanhas da Sardenha e a casa do autor de Pai patrão...
27. Uma ciganinha de dez anos que tentou roubar-me a carteira na Estação Termini... Veneza com sua solidão levitando por sobre os canais...
28. A India... Benares com seus crematórios ao lado do Ganges... Os leprosos me estendendo as mãos mutiladas... As vacas sagradas... Os gurus pelados pelos becos...
29. Katmandu. O avião pousando com dificuldade. Crianças nos arredores da pista. A lama, a tuberculose quase generalizada. A fé inútil... os macacos sagrados... e ao fundo de tudo o velho Himalaia... Um adolescente indiano querendo vender-me um punhal. A escuridão das ruas depois das 22 horas. A câmera fervendo de tanto clicar... Os alimentos contaminados. As diarréias... Os sininhos à Buda e a Kali...
30. As Medinas do Marrocos, Tanger, Marrakech, Casablanca... E pela manhã os cânticos vigorosos saindo do alto dos minaretes... As miragens do deserto... As Dunas de Merzouga...
31. A China. As máfias de Hong Kong. Uma travessia arriscada para Macao. O cassino. As pegadas dos portugueses que ainda estão por lá... Os riquixas me transportando de um lado a outro, sem o mais mínimo destino... Beijing com toda sua imensidão... Shangai... O fim ou o começo do mundo?... Ufa! Londres, Praga, Paris, a Bolivia, Havana, o panamá, Cartagena...
Enquanto ia lendo para si e para mim em voz baixa ia suando, fazendo alguns ajustes e exibindo fotos descoloridas e aos pedaços de lugares tenebrosos onde teria vivido. Lembrava o nome e o país de cada um...
Alguém apareceu na porta do prédio das "pequenas causas" e chamou pelo seu nome. Não o vi mais.