sexta-feira, 27 de junho de 2014

O vampiro é um bebê que morde...

"Os velhos gostam de ditar bons preceitos como consolo por não estarem mais em condições de dar maus exemplos..."
La Rochefoucauld

A mordida do jogador uruguaio no cangote do jogador italiano está produzindo estórias do arco da velha. Há até quem diga que já é o resultado da liberação da maconha naquele país; que são reminiscências do canibalismo ou até mesmo que o jogador uruguaio é realmente um Drácula, um vampiro da linhagem daqueles de Dusseldorf., etc, que veio reencarnar aqui nos trópicos.
O psicanalista Max Kohn produziu - bem antes da copa e bem antes do jogo em questão -  um artigo psi sobre o assunto. Artigo do qual reproduzo o fragmento abaixo. 
Descontando as interpretações pra lá de sobrenaturais, o texto é compreensível e esclarecedor, até mesmo para a grande maioria dos jogadores e dos torcedores de futebol. 
Ao final, está disponível uma bibliografia para aqueles que desejarem flertar com a confraria...


O VAMPIRO É UM BEBÊ QUE MORDE

Max Kohn
Psicanalista, membro do Espace Analytyque e da Maison de La Mère et de l'Enfant em Paris (Fundação Albert Hartmann, Sociedade filantrópica). "Maître de conférence" e orientador de pesquisas na Universidade Paris Diderot. maxkohn@wanadoo.fr


Do ponto de vista psicanalítico, qual é então a relação com os dentes e a mordida que contamina, que faz com que o outro também se torne vampiro?
"O beijo faz de vós um não morto", diz Van Helsing ao Doutor Seward em Drácula. O beijo aqui é um desencadeador, uma vez que é algo propriamente humano. Isso interroga acerca da significação do beijo nas práticas humanas. O beijo é muito antropomórfico.
É um mito que encontra uma fantasia universal que é de que, para sobreviver, o lactente deve praticar a sucção. O beijo no homem é algo cultural muito construído que, portanto, não tem equivalente no animal. Quando o bebê suga o seio de sua mãe, isso se situa, evidentemente, mais no pulsional do que no cultural. Freud, a esse propósito, fala de pulsão oral. O beijo é um objeto de civilização. O beijo do vampiro é tudo, menos sucção. Aliás, no cinema o beijo é uma cena sabiamente construída. É o momento do filme em que um indivíduo vai passar do estado humano ao estado de vampiro. O vampiro está, por fim, de preferência do lado da mordida do que do beijo. O vampiro é um operador da passagem entre natureza e cultura em nós. A mordida do vampiro não é terrível apenas para aquele que a recebe, mas também para as futuras presas deste último. É um ato com consequências múltiplas e terríveis.
É difícil associar a mordida do vampiro à do canibalismo, porque o próprio vampiro não come. É, entretanto, possível ver aí uma pista de reflexão como Lévi-Strauss (2000) lembra, em toda sociedade humana há um risco de comportamento predatório. A civilização é o interdito do incesto, mas também o interdito do canibalismo. Mas, ao mesmo tempo, o horizonte permanente de uma civilização é a possibilidade de ação predatória.
Toda a arte do beijo faz parte de um painel da sedução do apaixonado.
Van Helsing explica: "se a vítima da mordida morre, então os furinhos de seu pescoço cicatrizam". Sucção, beijo e mordida por si mesmos, não produzem nenhum efeito de periculosidade. Mas no inconsciente esse ato possui um lado perigoso mais desenvolvido. É porque o erotismo se mistura aí, e que a sexualidade não está distante. As construções sociais em torno do beijo vêm afirmar que é possível ir até o canibalismo.
No registro da arte erótica, o beijo pode marcar, mas vai se apagar. Na realidade humana, o vestígio que isso deixa se apaga. No mundo dos vampiros, é pre­ciso que a vítima morra para que o vestígio do beijo se apague, o que não é o caso no ser humano. O que é morder alguém? É marcá-lo.
As crianças que não vão bem porque ninguém as reconhece começam a morder as outras crianças. Quando os pais fracassam de todo, os bebês vão se dirigir a outros bebês mordendo-os. A mordida é uma palavra: todos os sintomas são palavras.
Com o vampiro estamos ao mesmo tempo do lado de cá do estádio do espelho, da constituição da palavra, da mordida da linguagem sobre nós. A ordem simbólica da qual a linguagem faz parte tanto quanto as línguas, para retomar o que Lacan (1966) dizia, exerce uma mordida que preexiste a nós como sujeitos. E é possível dizer que o vampiro é um bebê intemporal muito grande, sem nome, constituindo um fardo de carne atravessado por fluidos vitais e pulsionais. Pode ser perigoso para o adulto, porque pode matar a mãe e as pessoas que estão à sua volta a poder de desejos ou necessidades vitais.
O bebê é alguém que morde o seio materno. Melanie Klein (1968) fala da relação da criança com a agressividade. Há também agressividade e sadismo no próprio fato de mamar: de certa maneira, é uma devoração. O que a psicanálise mostra é que há, num momento ou outro, uma fusão entre o seio e o bebê. Winnicott (1975) é um dos que falam disso com mais clareza: o bebê encontra sua mãe, mas acredita que a cria. O bebê é onipotente de tal maneira que o seio materno foi ele quem o criou. E depois, um dia, ele se dá conta de que isso não é verdade. Há em comum com o vampiro o aspecto agressivo, sádico, oral, fusional e contaminante.
É, portanto, uma situação anterior ao desmame. O mito do vampiro conta alguma coisa desse arcaico. Aliás, o momento do aparecimento dos dentes de leite é um momento muito difícil para o bebê. Os dentes podem ser perigosos, mas podem, também, ser ameaçados. O bebê kleiniano é mais próximo do vampiro do que o bebê winnicottiano. Para o bebê kleiniano, a mordida é fundamental, assim como os primeiros objetos, ao passo que para o bebê winnicottiano é a brincadeira que conta, e não os primeiros objetos. A brincadeira de mordiscar para o bebê winnicottiano conta mais do que a mordida para o bebê kleiniano.
Na problemática geral "o que é um vampiro?", duas hipóteses caminham lado a lado desde o início: um invariante cultural e depois um invariante da psicanálise e que é o bebê. A primeira das experiências do lactente é a mamada. E ainda que não se trate da mãe, mas de uma mamadeira, encontramos a mordida. E quando vemos os filmes de vampiros e que lemos a literatura a esse propósito, temos a impressão de alguma coisa muito arcaica que está do lado da mordida, do lado da oralidade, e não está, de maneira alguma, numa sexualidade genital. Há ao mesmo tempo todo esse imaginário à volta do sangue: o leite é substituído pelo sangue. Isso produz, na realidade, os mesmos efeitos se se tratasse de leite: isto é, uma impressão de satisfação. Exceto que não é mais uma fonte de vida, mas uma fonte de morte e que é, mais ainda, de imortalidade. Isso evoca as metamorfoses do corpo da criancinha em sua história vindoura: de que maneira ela passa, como diria Freud, de um estádio a outro.
O mito do vampiro comporta um invariante cultural e uma fantasia que se refere também ao beijo. Eros, o deus grego do amor reanima Psique com um beijo. Já estamos aí do lado da vida. Ele pode igualmente frustrar os sortilégios transformando os sapos em príncipe encantado e insuflando a vida nas princesas adormecidas (CAHEN, 1997). Na Bíblia, o beijo é associado à criação do homem, à transmissão da alma: Deus cria Adão por um sopro, o que os cabalistas traduzem por um beijo. O beijo, explicam-nos, atenua as pulsões sexuais sem ter que passar ao ato. In utero o feto espontaneamente leva o polegar à boca. Exceto que neste caso o imaginário faz com que esta já não seja mais uma fonte de vida, mas uma fonte de morte, de renascimento e metamorfose no vampirismo.
Mostramos neste artigo a importância do vampiro como invariante cultural com diferenças culturais, que na perspectiva psicanalítica pode ser associado ao bebê que morde. O vampiro é um invariante cultural com diferenças culturais. O vivo é um não morto (undead) e o não morto ainda está vivo. De um ponto de vista psicanalítico qual é, então, a relação com os dentes e a mordida que contamina, que faz com que o outro se torne também vampiro? O vampiro é um bebê que morde e que tem um desejo ambivalente de imortalidade. O leite materno é vital como o é o sangue para o vampiro. A brincadeira de mordiscar para o bebê winnicottiano conta mais do que a mordida para o bebê kleiniano. O bebê kleiniano é mais próximo do vampiro do que o bebê winnicottiano.

REFERÊNCIAS
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3 comentários:

  1. Atirador de elite pediu autorização para atirar em suspeito na abertura da copa no Brasil, o Dilmão escapou por pouco, vejam o link da noticia, o Estado é o único que tem o "direito" de matar...:

    https://br.esporteinterativo.yahoo.com/noticias/atirador-de-elite-pediu-autorização-para-abater-suspeito-na-abertura-da-copa-141608168.html

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  2. Quando não domino a teoria referente ao ato, sou tendente a avaliar-me como reflexão já que sou um ser humano que sofre com os mesmos processos de civilização que os demais: acho abominável o ato de morder ou ser mordida fora de um ambiente de permissão para tal. É uma barbárie como outra qualquer, não acho "engraçadinho" nem "divertido"; acho rude, desumano e próprio de um idiota.

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