Acaba de ser lançada em Paris uma reedição do livro de Jean-Marie Brohm e Marc Perelman, intitulado Le Football ‹ Une Peste Émotionnelle (Les Éditions de la Passion). Com menos de 40 páginas, esse livreto constitui uma preciosidade, um texto admirável e de rara lucidez que aborda a questão do fanatismo, da alienação, da cretinização e de outras patologias sociais intrínsecas aos esportes em geral mas em particular à ŒŒorgia populista¹¹ do futebol. Como estamos no fim de mais uma Copa de Mundo, com os serviços públicos praticamente desativados, com muitos torcedores em surto e com o planeta inteiro estressado diante da televisão, parece oportuno selecionar algumas idéias e colocar em pauta as mais importantes reflexões nele contidas.
1 - Ideologia
Em nome de um pretendido ŒŒideal esportivo¹¹, todos os adeptos do culto da performance minimizam ou até ocultam sistematicamente as realidades efetivas do esporte de competição contemporâneo, singularmente do futebol que eles, contra todas as evidências, insistem em apresentar como um universo de ŒŒfraternidade¹¹, de ŒŒpaz¹¹, de ŒŒencontros amigáveis¹¹, de ŒŒpaixões igualitárias¹¹ e mesmo de ŒŒdemocracia¹¹ e de ŒŒcultura¹¹. Todos esses zeladores da macrosseita da bola fecham os olhos para a mentira, para a má-fé, para a falsa consciência, para a prática do doping, da corrupção mercantil, dos interesses mafiosos, das explosões de violência, do racismo e do ódio do outro que gangrenam o espetáculo multinacional do futebol. (...) Os ideólogos do futebol que consagram a maior parte de seu tempo incensando o amor pelo futebol, a festa, o sonho, a alegria, a cultura e outros slogans da mistificação esportiva, evidentemente não se preocupam em condenar o escândalo desses mercenários transnacionais pagos a preço de ouro enquanto os desempregados e grande parte dos trabalhadores vegetam na precariedade, na miséria e na pobreza. Nessa vasta legião familiar que reagrupa todas as tendências da esquerda e da direita, todas as tribos do jet-set, todos os devotos da sociedade do espetáculo, a gente reconhece sem dificuldade os farsantes ordinários do ópio do povo. (...) O ŒŒEspetáculo Total¹¹ de que fala Bromberger não é na verdade mais do que o espetáculo da violência social, aquele que leva centenas de milhares de torcedores a aclamar os gladiadores dopados do gramado. Quanto à ŒŒficção lúdica¹¹ do futebol, ela tem um gosto de sangue, de ódio e de xenofobia...
2 - Cultura & Arte
Pretender que o futebol participe da cultura é não apenas zombar do mundo, mas ter uma visão medíocre da cultura ‹ aquela do prêt-à-penser, do fast-thinking e do zapping ‹ que predomina hoje em dia nos meios de comunicação onde atuam os novos cães de guarda. (...) Contrariamente ao futebol, as obras de arte, estejam sob nossos olhos ou não, levam a pensar. Se uma partida de futebol que leva a turba ao delírio impossibilita o sujeito de pensar, a obra de arte ‹ por sua vez ‹ faz a pessoa refletir, participa do imaginário, se instala como alteridade à sombra do cotidiano; ela nos mergulha na fantasia e no sonho. O futebol não. Pensar no futebol é parar de pensar ou pensar só nele, isto é, não pensar mais. O projeto do futebol não é outro senão ele mesmo, um projeto sem projeto. Se com o futebol a percepção e o olhar lançados aos jogadores não constituem mais que um ritual unilateral, em vez de uma dialética com a obra, qual é a experiência de liberdade que se experimenta com esse esporte quando não existe mais do que a liberdade de uma experiência coisificada? (...) Se por um lado o artista cria seu espaço mesmo quando é limitado por um quadro, (...) a inteligibilidade do futebol não pode se ligar a uma história que não chega a ser mais do que uma coleção de cifras abstratas e a neurose social da estatística e dos resultados...
3 -Intelectuais
Este dogma pós-moderno ‹ que vai da esquerda ŒŒbranchée¹¹ à direira liberal ŒŒcarnassière¹¹ ‹ encontrou hoje em dia seu terreno de eleição na apologia cínica do esporte em geral e do futebol em particular. A Copa do Mundo de 1998 foi, nesse sentido, um bom revelador da amplitude da lobotomização que tomou conta dos intelectuais, dos ŒŒlíderes de opinião¹¹, particularmente os jornalistas de esquerda e, principalmente, das legiões de pensamento único esportivo onde se cruzam vedetes do showbiz, estrelas multimídia, ŒŒgrandes pensadores de nosso tempo¹¹, publicitários, apresentadores servis do prêt-à-penser e outros artistas do ŒŒrealismo¹¹. Todos torcedores apaixonados, fetichistas e loucos pelo futebol, fanáticos do couro e do gramado. (...) A esquerda plural e seus companheiros de rota esquecem que o futebol, como todas as outras realidades sociais de massa, é marcado pelas clivagens políticas e pelas opções ideológicas. Longe de ser neutro, por cima dos conflitos sociais, o futebol representa o mesmo tipo de doutrinamento totalitário que impede mesmo os espíritos mais lúcidos de permanecer críticos ou até mesmo simplesmente lúcidos. (...) A unanimidade com a qual os intelectuais de hoje se negam a criticar o futebol, deleitando-se com as delícias da vibração passional, é uma coisa inquietante, pois a fusão populista com a embriaguês popular por diversas vezes acabou num destino trágico, seja na aclamação do Führer, do realismo socialista, dos tribunais do povo ou da revolução cultural. (...) Os ditadores sabem muito bem por que eles são sempre e em todos os casos a favor do esporte. Quem apóia os esportes tem as massas a seu lado. É por isso que atualmente todos os governos são a favor dos esportes e contra a cultura... (...) A estetização da política que praticavam o fascismo ou o nazismo é substituída pela esportivização da estética que praticam todas as formas de totalitarismo, inclusive as democracias mais brandas...
4 - Sexo
É ao redor da sexualidade, como estrutura de comportamento violento e mesmo guerreiro, assim como do sadomasoquismo da grande maioria dos jogadores, que se afirma, em toda a sua plenitude, a economia futebolística. (...) Para Theodor Adorno e Max Horkheimer, a gente assiste mais ainda na sociedade atual a uma ŒŒhomossexualização inconsciente¹¹ de uma estrutura infantil. O ideal erótico se torna infantil, e isto é perceptível nas situações em que os jogadores se abraçam, se dão tapinhas na bunda, se jogam no chão uns sobre os outros, dão piruetas, gritam entre eles (...) A sexualidade ligada aos esportes, ao futebol, constitui uma degradação da vida erótica assimilada a um treinamento prévio, ao ato profissional, ao novo tipo de trabalho que constitui o jogo. A libido investida no processo esportivo é orientada para atos vulgares e compulsivos (cuspidas, palavrões, gestos obscenos) e para manifestações de violência sobre o outro. Em seguida e ao mesmo tempo, a tendência pulsional inerente ao futebol é o desenvolvimento de comportamentos homossexuais latentes entre os jogadores, sobre a base de uma cumplicidade, não amorosa mas de violência compartilhada entre vencidos e vencedores, na guerra do jogo.
5 - Corrupção
As redes de corrupção, os jogos marcados, os árbitros comprados, os jogadores ŒŒcontactados¹¹, os resultados predeterminados, tudo isto não é uma invenção de qualquer sociólogo ŒŒesquerdista¹¹. Sócrates, antiga estrela do time brasileiro, dizia em abril de 2001 na França, ao jornal Libération: ŒŒQualquer jogador da Terceira Divisão deve dividir seu salário com um agente, seu treinador e os dirigentes do clube. É a mesma coisa em todos os níveis. O futebol brasileiro se transformou num ambiente completamente prostituído. Hoje em dia, uma meia dúzia de pessoas à frente da federação paulista e da CBF sugam toda a riqueza do futebol brasileiro¹¹. (...) Os jogos trucados do Campeonato da Inglaterra ilustram a mundialização da corrupção no futebol. (...) O secretário grego dos esportes afirmava em novembro de 2000 ao Libération: ŒŒA arbitragem do futebol está submetida a uma gangue¹¹. (...) O futebol da Malásia está impregnado de corrupção. Oitenta e cinco por cento dos jogos da liga nacional foram trucados (...) Corrupção no futebol belga (...) Escândalo e corrupção generalizada no futebol chinês (...) Escândalo no futebol turco (...) A corrupção vai a galope no futebol francês (...).
6 - Violência
Àqueles que pensam que a violência do futebol não é mais do que um epifenômeno passageiro ou um ŒŒdetalhe¹¹ de sua maravilhosa legenda, basta mostrar a lista interminável de vítimas desse esporte: sufocamentos, pisoteamentos, explosões, cassetetes e punhaladas, tanto dentro como fora dos estádios. (...) Na Inglaterra, Alemanha e Holanda os hooligans, na Argentina os barrabravas, na Itália os teppisti (...) A Fifa indenizou os parentes das 78 vítimas de 1996 no estádio Mateos-Flores da Guatemala. (...) De 1976 para cá, os incidentes ligados ao futebol fizeram 53 mortos na Argentina. (...) Por detrás da tela de sonho se dissimula a maquinaria do futebol com seu impiedoso princípio de realidade saturado de ódios, de violências, de destruição e de mortos. (...)
Ainda não publicado no Brasil, o trabalho desses dois sociólogos franceses é mais do que tudo um chamado de alerta e de reflexão para com a velocidade com que a máquina esportiva, sob os mais diversos disfarces, tem interferido nos aspectos mais importantes da sociedade atual, favorecendo, principalmente entre a juventude, a alienação e até mesmo uma espécie de cretinização.
Ezio Flavio Bazzo