A pequena valise encostada às pernas era um truque para, se fosse o caso, poder cochilar sem ser roubada. O último ônibus não tardaria. Afastou-se um pouco para que me sentasse a seu lado e, na primeira oportunidade, desatou a falar. Já morei aqui. Desapareci durante cinco anos. Vim no velório de meu pai. O velho foi enterrado hoje e já estou caindo fora. Tenho uma incompatibilidade biológica com essa gente que fala cochichando, que quer saber demais, que passa a vida espiando por detrás das persianas e que acredita realmente ter alguma coisa a ver com o suposto assassinato de Cristo.
Tomei a decisão de zarpar daqui, no dia em que ouvi dois velhos fazendeiros conversando num ônibus que ia de Barbacena para Tiradentes. Um ensinava o outro como envenenar os cachorros de um vizinho. Esse mesmo sujeito referiu-se a uma vaca que não queria amamentar fazendo uma analogia com sua própria esposa. Achei demais. Arrumei a mala e saí daqui para sempre. Essa gente vive só esperando que as piores desgraças do mundo despenquem sobre suas cabeças. Hoje odeio ouvir falar em cidade antiga, barroca ou colonial. Esse palavreado me remete imediatamente à penumbra, à umidade, ao cheiro de excrementos, a um ardor no nariz e à deslealdade. O azul e o branco, o rococó das beiradas, os pregos enferrujados. Por todos os lados de minha infância havia fumaça de incenso litúrgico. Rezas, a espera da morte. Os mesmos telhados, as mulheres frígidas com aqueles mesmos e odiosos corpos de antas. Aquele passo de morte subindo as ladeiras e as escadarias, junto às paredes. A benevolência cristã e espírita. Pela tarde, quando começava a escurecer, todos os sinos badalavam ao mesmo tempo, era como se batessem literalmente dentro de meu cérebro. Aquilo sim que era solidão. A pior solidão é aquela que se experimenta no barulho. As persianas semi-abertas. Os trincos dos janelões com seus ruídos sempre iguais. Meu pavor durante a noite era de ser picada por um daqueles besouros que transmitem a doença de chagas. Diziam que o veneno ou sei lá o que ia diretamente para o coração. Minha casa, de tantos mortos nas mesas e nas paredes parecia um verdadeiro mausoléu. Todas aquelas caras e aqueles olhares macabros me vigiando. Sempre voltados para meus passos, meus sonhos e meus desejos. Aquelas malditas lâmpadas de 40 wats! Fracas, cor sépia, deprimentes. E as pedras. Só os interiores das igrejas me eram mais odiosos que as pedras. A infelicidade humana está diretamente ligada às pedras, as pedras e ao ferro. As dobradiças imensas das portas rangiam. Não havia óleo que resolvesse. O pai bêbado chegando depois da meia noite e aquele ruído macabro. E todo mundo tirando o chapéu, riscando uma cruz no peito e beijando os dedos diante das igrejas, da cruz e do calvário. Quando a noite já havia chegado, todos tinham que fechar as portas, as janelas, as cortinas. Ninguém sabe realmente por que, mas era uma espécie de código desta gente e desta cidade. O pretexto eram os mosquitos. Realmente parece que o cheiro colonial atrai esse minúsculo animal. O cheiro do torresmo e da banha de porco talvez atraiam essa praga para o interior das casas seculares, com seus barrotes e suas vigas infestadas de cupins. Não há fé que de jeito nos cupins. Mas a fé é tudo para esse povo. Dizer colonial e barroco é como dizer fé, submissão, calos nos joelhos, velas. É como revigorar a certeza de ter cravado pelo menos um daqueles pregos que dilaceraram os pés do nazareno. O inferno, a dor, o estigma da maldade, o apocalipse levado às últimas conseqüências no imaginário infantil, principalmente das meninas. O câncer que virá de uma maneira ou de outra, minha filha, - ouvia minha mãe dizendo – é melhor que já nos encontre nos braços da Imaculada Conceição. Demorei a dessacralizar a imagem que tinha de minha mãe, essa pobre mulher que perdeu a vida nesse inferno e que agora, como viúva, terá sua existência piorada: as tetas amarradas, a xota cabeluda e o rabo como se estivesse anestesiado. Já lhe disse que vim ao enterro de meu pai. Quando o vi morto, não senti nada. Absolutamente nada. Da infância lembro apenas suas sobrancelhas enormes e brancas e aquele seu olhar libertino e incestuoso, mas ao mesmo tempo de cão repressor da Opus Dei. Tenho também uma leve lembrança de seu catarro. Escarrava de madrugada numa baixela de estanho. Tinha amigos odiosos. Daqueles que ficavam em pé nos botecos idolatrando uma garrafa de pinga ou de cerveja, ou então de cócoras num posto de gasolina, em silêncio olhando para o nada, como se também vivessem embriagados pela solidão. Odiava com todo meu ser às mulheres que passavam o dia inteiro lavando as calçadas e as paredes, os lençóis e as toalhas. O cheiro de detergente associado à urina dos cães me dá náuseas até hoje. Às nove horas da noite, como já disse, todas as casas estavam religiosamente trancadas. Uma exceção aqui e outra ali, onde se podia ver a claridade de uma maldita lâmpada de 40 wats. Diz-se wats ou volts? Muitas, muitíssimas vezes, acordava lá pelas quatro da manhã com o canto curto e seco de um galo que não havia sido vendido na feira e que enfiava o pescoço pelas grades e fazia sua Ode à melancolia. Passava o resto da noite comovida, numa espécie de cumplicidade com aquela pobre ave tentando compreender a quem dirigia seu derradeiro lamento. Mas hoje não tenho mais nada a ver com isto. Sou cortesã – nome pomposo para dizer puta – longe daqui. Amo a modernidade, a pós-modernidade, o porvir que, tenho certeza, dinamitará todo esse entulho do passado. Amo os prédios e as casas de vidro, transparentes, cheios de luz e de lealdade.
Enquanto o motorista checava sua passagem arrastou-me para um lado e preveniu-me: não creia demasiadamente em minhas palavras. Lembre-se daquilo que a psiquiatra Nise da Silveira dizia: "O homem é mau, mas a mulher é perversa. Mulher sabe ser ruim como o demônio. Uma mulher engana o diabo. Duas enganam o inferno inteiro". E partiu.
Ezio Flavio Bazzo