"Se os olhares pudessem engravidar e matar as ruas estariam
cheias de mulheres grávidas e repletas de cadáveres".
Paul Valéry
Uma bobagem tem servido de álibi e transtornado a humanidade durante milênios: o crime de Caim, daquele que com uma única bordoada eliminou 1/5 da humanidade.
Entretanto, longe de ser aquilo que os pastores, os rabinos, os padres, os filósofos e outros reacionários e moralistas costumam apregoar, a inveja tem sido, e é, o nosso mais puro e mais autêntico instrumento de alerta para com as crapulices instituídas e para com as injustiças sociais. (Diga-me a quem invejas que saberei onde mora mais um impostor!). Daí o reconhecimento – mesmo tardio – de que Caim foi nosso primeiro herói, nosso justiceiro pré-histórico e o primeiro sujeito a dizer audazmente um NÃO, tanto a Deus como a toda imbecilidade e a toda neurose viciada e repetitiva que viria atormentar a família nuclear pelos séculos afora. A proposição socrática do "conhece-te a ti mesmo" não é nada diante da pergunta de Caim: "por que ele e não eu?".
Acusado secularmente de cometer o primeiro crime da espécie e de ser o patrono dos ressentidos e dos invejosos, Caim, no fundo, foi a primeira vítima tanto da soberba divina como da baixeza familiar, da ignorância dos pais e de um moralismo putrefato e esdrúxulo que, aliás, vem até hoje engendrando a matriz do "cidadão perdulário", do sujeito bonzinho e piedoso, do burocrata mascarado, do vivaldino político e enfim, do bundão vulgar e atual, conhecido e respeitado por quase todos.
Desculpem fazer alusão à anedota do Gênesis logo no terceiro parágrafo, mas é que ela está instalada como um cancro no inconsciente da ralé idólatra, de gerações e mais gerações de parasitas e mesmo da humanidade como um todo.
Apesar de Darwin e de suas teorias, dos seis bilhões de habitantes do planeta, não existe um único que não saiba que Caim teria sido o filho mais velho de Adão e Eva, personagens que, um pouco antes, haviam sido despejados do paraíso com um pontapé no traseiro. Esse primeiro filho de Adão e Eva era um jovem agricultor musculoso e sereno, que, segundo as poucas fontes existentes, mais ouvia do que falava. Um introspectivo, diriam os psicólogos. Era raizeiro e vegetariano, a ponto de não beber nem mesmo o leite das ovelhas. Caim sentia-se – com razão - descriminado e menos amado que seu irmão mais novo chamado Abel. Este, que, segundo seu pai, não gostava muito de trabalhar e muito menos de suar, era pastor de ovelhas, comia churrasco como os mais legítimos gaúchos, bebia leite como um bezerro e desfrutava, numa boa, da preferência dos pais. Eva, a senhora sua mãe, e – sabe-se lá por quê – expressava despudoradamente sua preferência por Abel. Certa vez, quando Caim matou um leão com seu cajado, – fato que naquele momento pré-histórico era uma façanha imensa – ao invés de reconhecer sua bravura, o fez ouvir que Abel, com sua funda, era tão ou mais hábil do que ele. Como se vê, a malignidade feminina e materna, bem como a familhitis, já estavam sendo semeadas no mundo.
Sempre que Abel, regressando do campo, aparecia lá no meio do rebanho, Eva corria em sua direção, abraçava e beijava-o com a maior alegria.
– Deus está contigo, costumava repetir.
Poderia tê-lo salvado da fúria de Caim se, ao menos, o tivesse aconselhado a levar ao pescoço ou no bolso uma daquelas pedras negras de turmalina que, segundo os astrólogos, é a mais poderosa contra todos os tipos de inveja. Mas era apenas uma pobre histérica e ignorante, engendrada um pouco antes com uma costela de seu marido.
Caim – como qualquer filho da atualidade – sofria profundamente com essa descarada preferência dos pais por seu irmão. Talvez – quem sabe – em suas angústias e reflexões, já lutasse – como nós – , para expurgar de seu dia a dia a idéia vã de um mundo libertário.
Como ainda não havia um psicanalista ou um skinnerista em cada esquina daquele mundo desolado, essa disputa pelo amor dos pais foi se agravando e se deslocando para uma disputa pelo amor de Deus. Sim, pelo amor do mesmo Deus que, anos antes, tomado por uma severidade doentia, havia enxotado seus pais do Éden, tanto por perceber que eles não o obedeciam como por tê-los surpreendido fornicando a sombra de uma macieira.
Teria sido Deus, pela primeira vez, a sentir as palpitações e a falta de fôlego que a inveja provoca? Teria invejado – como os pacientes/bebês de Melanie Klein[1] – o casal em plena performance da fornicação? Teria sido ele o autor da frase clássica dos invejosos: Por que eles e não eu?
A gota d'água ou o fim da paciência de Caim ocorreu no dia em que faziam oferendas. Abel, que queimava uma costela de ovelha ao Senhor via a fumaça subir verticalmente para o "céu", já Caim, que ofertava ervas e raízes assistia frustrado a fumaça de sua oferenda rastrear o solo e dispersar-se, até que o próprio fogo se apagava. Gabola e acossando moralmente a seu irmão, Abel disse-lhe:
– Fiz oferenda a Deus com a carne e a gordura de meu rebanho. Ele as aceitou, pois a fumaça subiu para o alto em forma de uma coluna reta. No entanto, o que aconteceu quando puseste ervas e raízes no altar? Bem o sabes: o fogo apagou-se. Bela oferenda, em verdade! Pareceu-me que não agrada a Deus o cheiro de tuas ervas queimadas.
Caim baixou o olhar como se ouvisse a voz neurótica da mãe repetindo:
– Deus está com Abel! Deus está com Abel!
Olhou para as montanhas e jurou para si mesmo que esmagaria os miolos daquele pequeno impostor. A partir daquele momento, Abel, seu irmão mais novo, o filhinho mimado da mamãe, estaria literalmente marcado para morrer.
Nos dias que se seguiram, ficou mais silencioso e deprimido do que normalmente já era. Caminhou pelas encostas vazias daquele mundo inimaginável, emagreceu, refletiu, teve insônia, filosofou (talvez tenha sido inclusive, o verdadeiro pai da filosofia) e concluiu que realmente seu irmão era um crápula, um mau caráter, um idólatra estúpido, um esotérico de merda e um grande filho-da-puta.[2]
Deus está com Abel! Mas por quê? Por quê não há de estar também comigo?
Esta pergunta continua a ecoar nas sacristias, nas alcovas e nos claustros da atualidade. Na primeira oportunidade, cumpriu o que havia prometido para si mesmo: esmagou o crânio de Abel com um porrete, mais ou menos como certos índios brasileiros faziam uns com os outros para aliviarem-se mutuamente do sofrimento que a febre da varíola lhes provocava.
– Caim, que fizeste? O sangue de teu irmão manchou a terra e clama por mim – sussurrou-lhe sádica e persecutoriamente o Senhor, o grande e enigmático Criador do universo.
– Caim amaldiçoado, fora daqui! – Gritou-lhe a mãe. Mais ou menos a mesma frase e no mesmo tom que ela própria e Adão haviam ouvido de Deus ao serem enxotados do paraíso.
Caim, compreendendo que vivia num mundo de bajulação, que tanto o amor divino como o amor materno eram balelas e que na vida nada é retificável, deu lhes as costas e partiu.
Foi alcançado por sua irmã menor que lhe disse:
– Vou contigo meu irmão. Deram-se amorosamente as mãos e caminharam juntos durante uma semana.[3]
Estando a uns cem quilômetros do lugar do assassinato, a irmã, exausta, pronunciou a palavra Node, que, no idioma deles queria dizer: basta! Chega! Vamos ficar por aqui mesmo! Ali Caim e sua irmã tiveram filhos e fundaram uma cidade que ficou conhecida pelo nome de Node. Claro que esta cidade não consta em nenhum guia turístico da modernidade, mas pelas coordenadas bíblicas, tanto a família Adão e Eva (que ainda não tinha sobrenome) como o vilarejo fundado por Caim e sua irmã, ficava lá pelos lados da Mesopotâmia, pelas barrancas dos rios Eufrates e Tigre. Mais ou menos por aquelas regiões malditas onde os iraquianos, os judeus, os palestinos, os iranianos, os sírios e etc, não com porretes, mas com mísseis, estão se massacrando mutuamente há décadas.
Mas leitor, não queira aprofundar-se nestas bobagens e não tenha a pretensão de ser um iluminista. São apenas lendas eternas que atormentam os seres entediados, "pecados capitais" que interessam principalmente aos abastados e às classes dominantes e que têm servido, cada vez mais, como instrumento estupidificante, através do qual os Cains disfarçados de Abéis e os Abéis disfarçados de Cains vão oprimindo, desqualificando e culpabilizando as multidões.
Contenta-te com tuas próprias interpretações das coisas e do mundo, porque cada exegeta e cada beato a quem indagares sobre Caim, sobre o ressentimento e sobre a inveja, inventará uma bobagem diferente para convencer-te. Esses apologistas de ficções lembram muito bem aquele velho ditado cigano que diz:
"Se você faz a mesma pergunta a vinte ciganos receberá vinte respostas diferentes[4]. Por outro lado, se você faz a um cigano a mesma pergunta vinte vezes, ainda conseguirá vinte respostas diferentes". E isto, porque, como lembrava o autor de Ecce homo, o cinismo é o que de mais alto se pode alcançar sobre a terra.
Ezio Flavio Bazzo
Entretanto, longe de ser aquilo que os pastores, os rabinos, os padres, os filósofos e outros reacionários e moralistas costumam apregoar, a inveja tem sido, e é, o nosso mais puro e mais autêntico instrumento de alerta para com as crapulices instituídas e para com as injustiças sociais. (Diga-me a quem invejas que saberei onde mora mais um impostor!). Daí o reconhecimento – mesmo tardio – de que Caim foi nosso primeiro herói, nosso justiceiro pré-histórico e o primeiro sujeito a dizer audazmente um NÃO, tanto a Deus como a toda imbecilidade e a toda neurose viciada e repetitiva que viria atormentar a família nuclear pelos séculos afora. A proposição socrática do "conhece-te a ti mesmo" não é nada diante da pergunta de Caim: "por que ele e não eu?".
Acusado secularmente de cometer o primeiro crime da espécie e de ser o patrono dos ressentidos e dos invejosos, Caim, no fundo, foi a primeira vítima tanto da soberba divina como da baixeza familiar, da ignorância dos pais e de um moralismo putrefato e esdrúxulo que, aliás, vem até hoje engendrando a matriz do "cidadão perdulário", do sujeito bonzinho e piedoso, do burocrata mascarado, do vivaldino político e enfim, do bundão vulgar e atual, conhecido e respeitado por quase todos.
Desculpem fazer alusão à anedota do Gênesis logo no terceiro parágrafo, mas é que ela está instalada como um cancro no inconsciente da ralé idólatra, de gerações e mais gerações de parasitas e mesmo da humanidade como um todo.
Apesar de Darwin e de suas teorias, dos seis bilhões de habitantes do planeta, não existe um único que não saiba que Caim teria sido o filho mais velho de Adão e Eva, personagens que, um pouco antes, haviam sido despejados do paraíso com um pontapé no traseiro. Esse primeiro filho de Adão e Eva era um jovem agricultor musculoso e sereno, que, segundo as poucas fontes existentes, mais ouvia do que falava. Um introspectivo, diriam os psicólogos. Era raizeiro e vegetariano, a ponto de não beber nem mesmo o leite das ovelhas. Caim sentia-se – com razão - descriminado e menos amado que seu irmão mais novo chamado Abel. Este, que, segundo seu pai, não gostava muito de trabalhar e muito menos de suar, era pastor de ovelhas, comia churrasco como os mais legítimos gaúchos, bebia leite como um bezerro e desfrutava, numa boa, da preferência dos pais. Eva, a senhora sua mãe, e – sabe-se lá por quê – expressava despudoradamente sua preferência por Abel. Certa vez, quando Caim matou um leão com seu cajado, – fato que naquele momento pré-histórico era uma façanha imensa – ao invés de reconhecer sua bravura, o fez ouvir que Abel, com sua funda, era tão ou mais hábil do que ele. Como se vê, a malignidade feminina e materna, bem como a familhitis, já estavam sendo semeadas no mundo.
Sempre que Abel, regressando do campo, aparecia lá no meio do rebanho, Eva corria em sua direção, abraçava e beijava-o com a maior alegria.
– Deus está contigo, costumava repetir.
Poderia tê-lo salvado da fúria de Caim se, ao menos, o tivesse aconselhado a levar ao pescoço ou no bolso uma daquelas pedras negras de turmalina que, segundo os astrólogos, é a mais poderosa contra todos os tipos de inveja. Mas era apenas uma pobre histérica e ignorante, engendrada um pouco antes com uma costela de seu marido.
Caim – como qualquer filho da atualidade – sofria profundamente com essa descarada preferência dos pais por seu irmão. Talvez – quem sabe – em suas angústias e reflexões, já lutasse – como nós – , para expurgar de seu dia a dia a idéia vã de um mundo libertário.
Como ainda não havia um psicanalista ou um skinnerista em cada esquina daquele mundo desolado, essa disputa pelo amor dos pais foi se agravando e se deslocando para uma disputa pelo amor de Deus. Sim, pelo amor do mesmo Deus que, anos antes, tomado por uma severidade doentia, havia enxotado seus pais do Éden, tanto por perceber que eles não o obedeciam como por tê-los surpreendido fornicando a sombra de uma macieira.
Teria sido Deus, pela primeira vez, a sentir as palpitações e a falta de fôlego que a inveja provoca? Teria invejado – como os pacientes/bebês de Melanie Klein[1] – o casal em plena performance da fornicação? Teria sido ele o autor da frase clássica dos invejosos: Por que eles e não eu?
A gota d'água ou o fim da paciência de Caim ocorreu no dia em que faziam oferendas. Abel, que queimava uma costela de ovelha ao Senhor via a fumaça subir verticalmente para o "céu", já Caim, que ofertava ervas e raízes assistia frustrado a fumaça de sua oferenda rastrear o solo e dispersar-se, até que o próprio fogo se apagava. Gabola e acossando moralmente a seu irmão, Abel disse-lhe:
– Fiz oferenda a Deus com a carne e a gordura de meu rebanho. Ele as aceitou, pois a fumaça subiu para o alto em forma de uma coluna reta. No entanto, o que aconteceu quando puseste ervas e raízes no altar? Bem o sabes: o fogo apagou-se. Bela oferenda, em verdade! Pareceu-me que não agrada a Deus o cheiro de tuas ervas queimadas.
Caim baixou o olhar como se ouvisse a voz neurótica da mãe repetindo:
– Deus está com Abel! Deus está com Abel!
Olhou para as montanhas e jurou para si mesmo que esmagaria os miolos daquele pequeno impostor. A partir daquele momento, Abel, seu irmão mais novo, o filhinho mimado da mamãe, estaria literalmente marcado para morrer.
Nos dias que se seguiram, ficou mais silencioso e deprimido do que normalmente já era. Caminhou pelas encostas vazias daquele mundo inimaginável, emagreceu, refletiu, teve insônia, filosofou (talvez tenha sido inclusive, o verdadeiro pai da filosofia) e concluiu que realmente seu irmão era um crápula, um mau caráter, um idólatra estúpido, um esotérico de merda e um grande filho-da-puta.[2]
Deus está com Abel! Mas por quê? Por quê não há de estar também comigo?
Esta pergunta continua a ecoar nas sacristias, nas alcovas e nos claustros da atualidade. Na primeira oportunidade, cumpriu o que havia prometido para si mesmo: esmagou o crânio de Abel com um porrete, mais ou menos como certos índios brasileiros faziam uns com os outros para aliviarem-se mutuamente do sofrimento que a febre da varíola lhes provocava.
– Caim, que fizeste? O sangue de teu irmão manchou a terra e clama por mim – sussurrou-lhe sádica e persecutoriamente o Senhor, o grande e enigmático Criador do universo.
– Caim amaldiçoado, fora daqui! – Gritou-lhe a mãe. Mais ou menos a mesma frase e no mesmo tom que ela própria e Adão haviam ouvido de Deus ao serem enxotados do paraíso.
Caim, compreendendo que vivia num mundo de bajulação, que tanto o amor divino como o amor materno eram balelas e que na vida nada é retificável, deu lhes as costas e partiu.
Foi alcançado por sua irmã menor que lhe disse:
– Vou contigo meu irmão. Deram-se amorosamente as mãos e caminharam juntos durante uma semana.[3]
Estando a uns cem quilômetros do lugar do assassinato, a irmã, exausta, pronunciou a palavra Node, que, no idioma deles queria dizer: basta! Chega! Vamos ficar por aqui mesmo! Ali Caim e sua irmã tiveram filhos e fundaram uma cidade que ficou conhecida pelo nome de Node. Claro que esta cidade não consta em nenhum guia turístico da modernidade, mas pelas coordenadas bíblicas, tanto a família Adão e Eva (que ainda não tinha sobrenome) como o vilarejo fundado por Caim e sua irmã, ficava lá pelos lados da Mesopotâmia, pelas barrancas dos rios Eufrates e Tigre. Mais ou menos por aquelas regiões malditas onde os iraquianos, os judeus, os palestinos, os iranianos, os sírios e etc, não com porretes, mas com mísseis, estão se massacrando mutuamente há décadas.
Mas leitor, não queira aprofundar-se nestas bobagens e não tenha a pretensão de ser um iluminista. São apenas lendas eternas que atormentam os seres entediados, "pecados capitais" que interessam principalmente aos abastados e às classes dominantes e que têm servido, cada vez mais, como instrumento estupidificante, através do qual os Cains disfarçados de Abéis e os Abéis disfarçados de Cains vão oprimindo, desqualificando e culpabilizando as multidões.
Contenta-te com tuas próprias interpretações das coisas e do mundo, porque cada exegeta e cada beato a quem indagares sobre Caim, sobre o ressentimento e sobre a inveja, inventará uma bobagem diferente para convencer-te. Esses apologistas de ficções lembram muito bem aquele velho ditado cigano que diz:
"Se você faz a mesma pergunta a vinte ciganos receberá vinte respostas diferentes[4]. Por outro lado, se você faz a um cigano a mesma pergunta vinte vezes, ainda conseguirá vinte respostas diferentes". E isto, porque, como lembrava o autor de Ecce homo, o cinismo é o que de mais alto se pode alcançar sobre a terra.
Ezio Flavio Bazzo