quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

As pernas semi-abertas da América Latina


"Que alguien haya nacido, haya vivido, haya muerto, haya desaparecido sin dejar más direcciones que la del cementerio, es ahí donde reside para mí la esperanza".[1]

Jankélévitch

Diablo Rojo, Ciudad de Panamá, 2006. Por mais idealista, otimista, guevarista, fidelista,.gandhista, revolucionário etc, que alguém possa ser, quando tira os cotovelos da janela e o traseiro do sofá para perambular pela América Latina, não terá outra alternativa senão concluir, desolado (e enojado) que tudo isto aqui, apesar do histrionismo e das mentiras dos caudilhos, das estatísticas dos carecas do BID, e das esperanças dos bispos de Cuernavaca, continua sendo uma cloaca amorfa onde a vida foi e é cotidianamente sucatada e onde as populações, aos pedaços, não sabem o que fazer para interromper o processo doentio de autoflagelo e de auto-destruição em que estão mergulhadas. O barulho, o trânsito, a desordem, a insalubridade, a hipocondria, a indigência generalizada, as intrigas interpessoais, a reeleição secular de corruptos, o delírio de ser algo não sendo nada, a fúria, a gatunagem e a crença na República e no sobrenatural são os instrumentos mais comuns desse autoaniquilamento e dessa Idade Média que insiste em não acabar.

Santo Dios, eso no es verdad... es un odioso concepto burgués! Esbraveja um sindicalista decadente (aliado ao governo) com o bigodaço de Stalin e que não quer abrir mão dos privilégios clandestinos e da mamata do ofício.

Dios mio! Resmunga também indignado e ofendido um Zapatista desempregado e formado em filosofia que, aliás, já foi funcionário de uma multinacional e que só virou "revolucionário" depois que foi demitido. A filosofia acadêmica? Talvez por causa dela Rousseau chegou a dizer que odiava os livros, "só ensinam a falar daquilo que não se sabe".

Virgem de Guadalupe! exclama uma beata ignorante que idolatra abertamente a família Bush, os norte americanos e os estrangeiros em geral e que acredita piamente que a Santíssima Trindade é Colombiana e que a América Latina só não é um paraíso por causa dos pecadores. Quando percebeu minha descrença citou esta frase de Gustave Thibon: "No se escapa a Dios. Quien rehúsa ser su hijo sera eternamente su símio".[2]

Santo Jesus! Exclama um outro sectário, este, Boliviano, direitista, nacionalista, que sempre odiou a K. Marx e que é amante incurável das "eleições democráticas", do subdesenvolvimento e dos dejetos que correm sob as nuvens desde a Tierra del Fuego até as mais longínquas e caóticas províncias mexicanas. A uma de minhas indagações sobre como combater a indigência instituída secularmente na América Latina, respondeu-me, curiosamente, com este pensamento de Artaud: "Cuando veo em Karl Marx o en Lenin la palabra espíritu, yo me digo que hay mugre y revoltijo inmundo y que Dios le há chupado el culo a Lenin y que es así como há pasado siempre..." Os personagens de esquerda e de direita que até os anos 80 eram identificados de longe, agora não são facilmente distinguidos. Um chavão aqui, um fanatismo ali, uma insinuação xiita acolá, idéias ambíguas por todos os lados, revisionismos incompreensíveis e irreais etc, que, na verdade do dia-a-dia os iguala e os confunde como se fossem os mesmos tipos de cães, apenas com coleiras diferentes.

Ciudad de Colón, 2006 (foto do autor)Sorte que encontrei também um cético. Estava no hall principal do cassino que fica junto ao Hotel César Park olhando para centenas de jogadores diante dos caça-níqueis ou das roletas. Aproximou-se de meu ouvido e proferiu:

- Queres saber por que a América Latina está a merda que está? Olhe para esse bando de idiotas. Todos corruptos aqui ou lá em seus países que vêm tratar suas contas clandestinas neste paraíso fiscal e aproveitam para se divertir com o dinheiro rapinado... Aquele chinês ali, que parece um Lhasa Apso, é traficante de meninas da Colômbia, da Nicarágua, da Costa Rica etc, para a prostituição daqui. Aquele mulato ao seu lado é chefe de uma gang que traz ônibus velhos dos EEUU para cá. Aquela mulher gorducha é a chefe de uma quadrilha de colarinho branco que cobra propina dos navios que entram no canal. Aquele outro é alto funcionário de um ministério brasileiro, aquele outro é ministro argentino, aquele outro é chefe de uma Ong Colombiana, aquele magricela engravatado é pastor e deputado no Equador etc, etc. Todo o dinheiro que é injetado pelo BID, pela UNESCO, pela ONU, pelo UNICEF etc nos governos, nas Ongs e em outros organismos públicos da América Latina é sistematicamente desviado para partidos, famílias, gestores, executivos, lideres religiosos etc... E é por isso que na América Latina inteira as escolas são um lixo, os hospitais são um lixo, as condições de trabalho e de moradia são um lixo, a vida na caserna é um lixo, os açougues são um lixo, o judiciário é um lixo, a vida privada é um lixo, as prisões são um lixo, o parlamento é um lixo, a burocracia é um lixo, o caráter das pessoas é um lixo... Só se salvam as zonas "nobres", as agências de mármore das financeiras, das multinacionais e as famílias dos executivos que nelas atuam, vivendo como paxás em suas vilas e com seus carros blindados, rapinando mão de obra quase gratuita, servindo de testas de ferro para os corruptos da América inteira, seduzindo e prostituindo as filhas da plebe e comercializando porcarias desnecessárias com os autóctones. Zona Franca? A única zona franca que conheço é a zona de meretrício! Setenta e seis bancos para quê? Vinte e uma universidades para quê, se o chocolate, o chá, os biscoitos, o fio dental, o rum, o cigarro e até o papel com que as mães de família nativas limpam o cu, o próprio e o de seus filhos, ainda é produzido por multinacionais alemãs, gringas, belgas, francesas, espanholas...? Mesmo assim, nesse frenesi neurótico, as mil e uma Ongs e associações revolucionárias com seus impostores, (supostos voluntários e heróis) acreditam estarem semeando franciscanamente os grãos de uma política social libertária, quando na verdade estão apenas ganhando seus trocados, fazendo teatro e religião. E o religioso –não podemos esquecer – é aquele sujeito cínico que, por ter consciência de sua deslealdade para consigo e para com os outros, tem que inventar sistematicamente um deus para prostrar-se e para desculpar-se.

Já na rua, fico pensando o que diria o homem de Neandertal se entrasse num destes ônibus conhecidos por "diablos rojos", (trazidos como sucatas dos EEUU) com sessenta ou setenta idiotas se sufocando e se acotovelando mutuamente e por nada?

Aliás, os cassinos não mudaram em nada suas programações em função do incêndio de um deles, ontem, a uns mil metros do famoso Crawn. Já são dezoito os mortos. Morreram queimados. Não havia porta de emergência.... O ar condicionado é novamente o vilão. Acreditem, não é só burrice o que massacra e tortura a América Latina, é ódio inconsciente contra si mesmo. Todo latino sonha com seu próprio aniquilamento e com sua própria incineração, de preferência vivo, os olhos virados como os de Santa Tereza, e com um padre lhe administrando a extrema-unção. Parece um horror? São as pernas semi-abertas da América Latina. Vejam os filmes, vejam os livros, vejam as músicas, vejam os governantes, vejam a idolatria popular pelos prevaricadores, vejam os tipos que circulam por aí boxeando, rebolando, gatunando, rezando, discursando, futebolando, emigrando ou se doutorando...

Também já são uns cinqüenta os mortos por envenenamento aqui no Panamá. Foram envenenados por um xarope contaminado por dietilenglycol que é distribuído gratuitamente pelo Seguro Social Panamenho... Não seria esta a verdadeira, macabra e secreta função do Estado?

Dios mio! Desculpam-se os médicos, os químicos e os burocratas responsáveis com suas caras de eternas vítimas. Yo no he visto alma más dolorosa que esa grande y dolorosa alma española, toda la tristeza árida de sus campos castellanos se conglomera en ella. Aun su carcajada es triste[3], dizia vargas Vila.

Obesidade, fumaceira, loteria, casas de penhora, touradas, construção de mais cassinos, a luta e o sonho de ir "vencer" nos EEUU ou na Espanha, a businadinha clássica dos taxistas, os shoppings lotados e o ar condicionado quase a zero graus que ainda será usado, como o dietilenglycol para eliminar os rebanhos... Mas nada que aflija verdadeiramente, pois por aqui há um pensamento que diz: "el que se aflige, se afloja".[4]

Parte antiga da Ciudad de Colón (foto do autor)É notícia de primeira página a santificação Papal de um bispo mexicano... Ninguém se dá conta que, comicamente, a relíquia apresentada foi um osso. Por menos que se queira, tudo isto lembra a catadores de papel corrompidos pela escravidão e tudo huele a muchedumbre.

Fizeram um plebiscito para saber se aumentam ou não o Canal que une o Atlântico ao Pacífico. Como isso só beneficiará realmente os grandes armadores, comerciantes e milionários, setenta por cento da população, ingênua e impotente, se absteve de ir às urnas. Mas como o projeto foi aprovado assim mesmo, serão eles, esses pobres eleitores que amanhã estarão lá trabalhando como escravos para os magnatas. Pouca gente sabe que o pintor Paul Gauguin, antes de ir para o Taiti (sempre confundo Taiti com Haiti) trabalhou na construção do Canal do Panamá. Por pouco não foi fisgado pela malária. Viveu ali na Ilha de Taboga.

Disfarçado de cupido negro o vendedor de rosas aparece novamente no mesmo restaurante e faz a mesma mise-en-scène de ontem. A moça a quem oferece uma rosa abre abobalhadamente os maxilares e seu acompanhante deposita na mão do ladino uma nota de um dólar. Só agora percebo que tem vários dentes de ouro. Ele próprio me relata que os povos antigos da mesoamérica incrustavam jade em suas arcadas e que isso dava um poder oculto aos seus dentes.

A sacralização e a mistificação das mães nesta pobre e ensolarada América Latina. Por que latina e não hispânica? As loterias, a sorte, a esperança, a fé, o otimismo, as fábulas, o barulho, o calor, a malária, a dengue, o artesanato nas calçadas, a corrida interminável atrás do dinheiro, do sexo, da rumba, do matrimônio... Na mesma catedral em frente ao cassino Crown, com seus sóbrios mosaicos, uma seqüência de casamentos, crismas, batismos e até exéquias... "Esas pompas de jabon – diria Nizan - que inflan los viejos pensadores estallan al soplo del viento que atraviesa los pátios de las fábricas e los bulevares desolados de los Barrios obreros..." [5]

Um arroz con pollo, tamal e tajada. Lá longe uma dúzia de arranha-céus sendo construído pelos gringos. O capital de construção é gringo o capital hoteleiro é espanhol. E algumas pessoas falam da colonização como se fosse coisa do passado.

Escolares engravatados, um pastor vendendo gel bento do Egito, frases moralistas na fachada dos ônibus, o maior boxeador panamenho desfilando sorridente em carro aberto pelas avenidas esfumaçadas. Como é que esses analfabetos não enrubescem? Pierrot crucificado e furioso que faz caretas de riso para não explodir em soluços, diria Vargas Vila. Americanos aposentados, uma mulher chamada Clistel, canhões que lembram mais a miséria humana do que alguma eventual honraria. Espantalhos. Nada é mais chocante do que ver um índio engravatado, fardado ou de batina, e nas avenidas, os "diablos rojos" soltando fuligem por suas robustas chaminés. Por mais nacionalista que o sujeito seja, toda essa desolação meio paraguaia faz qualquer um preferir viver num chambre de bonne[6] em Paris, com setecentos euros por mês, do que viver como um magnata por aqui.

Que tal a Playa Gorgona? Que tal as Cabañas de las Hadas? Que tal o final de semana no Resort Decameron? Por todos os lados charlatanismo e acefalia intelectual. As índias kunas vendendo as tais molas (trajes) na calçada. No passado andavam nuas com esses desenhos pintados no corpo. Foi em 1700 que os huguenotes franceses as obrigaram a cobrirem as partes.

Notícias dos Nukak Makú, lá na Colômbia, o último grupo aborígine nômade do mundo. Os bêbados estrangeiros em pé, no bar dos hotéis, com suas meretrizes grudadas em seus bolsos e nos botecos mais fuleros, os mendigos, lúcidos como hienas estendendo-me seus braços ociosos e quase sem veias. Hay que suprimir a los mendigos – dizia a parte infame de Nietzsche – porque uno se irrita de darles y se irrita de no darles...[7]

Ezio Flavio Bazzo

Paris




sexta-feira, 28 de abril de 2006

Uma Ode aos Gatos do Cemiterio de Roma


No quinto dia de visitas ao principal cemitério de Roma, quando já havia feito umas duzentas ou trezentas fotos dos gatos que vivem clandestinamente por lá, no meio das tumbas e imersos naquela solidão mortuária, deparei-me com uma andarilha vestida de preto, ao lado de uma bengala e sentada junto a um monumento que, do nada, passou a falar-me:


-Qual madame dessa sociedade hedionda já acompanhou o primeiro cio de uma gata? Qual o homem que já teve a paciência de ignorar a máquina infernal da sociedade por uns momentos e acompanhar os estremecimentos e a tortura que o cio provoca? Observando aquela pequena pantera doméstica que não encontrava sossego em nenhuma posição e que era obrigada e subjugada pela biologia e pelo instinto a buscar um macho e a reproduzir sua espécie, ficava meditando entre as esquinas de minha miséria, sobre a maldade da vida, sobre o destino cruel das carnes, sobre a objetização de todos os seres por uma força invisível e cruel que, da clandestinidade dos genes dita ordens irrefutáveis...

Entre meus devaneios -prosseguia aquela mulher - parecia mais do que óbvia: quão cruel e violenta deve ter sido a luta da civilização para sufocar o cio humano! Como as fêmeas primitivas que hoje são mendigas como eu, mães, putas, filhas, avós etc., devem ter sido sufocadas, amaldiçoadas e destruídas para poderem conquistar o silêncio onde estão confinadas. Nenhum miado, nenhum escândalo, nenhum desassossego... Apenas uma cólica mensal, um hálito um pouco mais forte, um chá de losna...

Quantos milhões de anos não foram necessários para reduzir na mulher esse cio, para colocá-lo sob controle, para proibir esse choro noturno inconsolável... Quantas ameaças e quanto espanto deve ter assaltado a sexualidade feminina para que a mulher pudesse chegar a esse oceano sem tormentas e nele ancorar para sempre...

Quatro, cinco, seis horas da madrugada. A gata choraminga por entre os bagulhos de meu casebre, rola pelo chão ensebado, inventa mil posições, cria o seu Kama Sutra, lambe-se em alucino, vai ao casebre vizinho e chama, clama por qualquer coisa que possa vir a ser o objeto de seu cio... Mas a noite é escura. Roma inteira dorme sob a proteção pederastica da imprensa e dos Papas, sob a mentirada vil da publicidade associada à crueldade vil do capitalismo mafioso. A noite é surda e escura para aquela pobre gata assim como o é para as mulheres e para os mendigos... Às vezes ouvia-se os resmungos de uma vizinha e companheira de infortúnio que se sentia incomodada pelo escândalo supremo do sexo. A gata, além de não deixa-la dormir, devia, com seus miados, rememorar o trauma de suas origens remotas e mutiladas...

O dia quase amanhecia e a paixão ainda a atormentava enquanto tentava construir, à sombra das paredes, das bengalas e de latas velhas o seu Deus e até mesmo o seu Everest. Não conseguiu.

Perco finalmente a paciência. Ergo esta voz de mulher acostumada a pedir restos por misericórdia. Chuto-lhe o traseiro, exatamente como fizeram comigo e com todas as fêmeas durante séculos. Só então ela silencia. Sufoca seu miado. Encolhe-se por debaixo de um cobertor sujo, deixando ver apenas o resplendor de seus olhos. Pelo menos por uns instantes tenho a ilusão de que minha violência vence a violência dos genes...

Fez um longo silêncio enquanto caminhava pelo meio daquelas lápides luxuosas para em seguida concluir:

Talvez o que hoje é esnobemente chamado desejo pelos homens de ciência, pelos psicanalistas e por outros tolos da modernidade, não seja mais do que a última migalha dessa fúria que, pela ação do chicote, deslocou-se de entre as pernas para a memória...

Ezio Flavio Bazzo

sexta-feira, 7 de abril de 2006

Entre os gritos do Carcará e a Desfaçatez da Raça Humana


Neste instigante livro, Ezio Flávio Bazzo realiza um vôo espetacular sobre o fato de estar vivo, aqui, agora, em qualquer lugar, há qualquer hora, tendo como pano de fundo o sertão Sanfranciscano, num Brasil perdido de sua própria história. Através de uma narrativa que mescla pleno domínio das usuais formas acadêmicas de expressão com o conhecimento empírico da vida, usa palavras elaboradas e palavras "chulas" como se quisesse nos dizer que viver é essencialmente, transitar por entre as grandes e contraditórias dimensões da realidade, e apenas isto. Salpicando o texto de erótica sensualidade, Bazzo transita facilmente e com aparente despretenção pela cultura cristalizada destes rincões perdidos, atravessando sorrateiramente as questões ambientais, político-socias, éticas, morais e históricas deste pedaço de Brasil entregue à própria sorte. Trabalhando apenas com a realidade nua, desprovida de sentimentos, emoções e ideais, vai recheando a narrativa com estilhaços que doem e vai linkando às suas impressões descritas, teses que empalidecem rostos complacentes,esbofeteiam sorrisos, desnudam a credulidade cega e sobretudo, incendeiam qualquer resto de esperança.

Seu livro é essencialmente, um grande e articulado GRITO!!!

Maria Helena Sleutjes