sábado, 15 de novembro de 2003

A pre(tensão) de falar em nome próprio


[O sofrimento nos ameaça por três lados: em nosso corpo (...), fadado à decadência e à dissolução (...), no mundo externo, que encerra forças invencíveis e inexoráveis para se encarniçarem contra nós e nos aniquilarem; (...) e, por último, em nossas relações com os outros seres humanos.]


Freud, citado por Fréderic Schiffter


Com o slogam sedutor de Falar em Nome Próprio, o II Encontro Mundial de Psicanálise, promovido pelos Estados Gerais da Psicanálise, aqui no Hotel Glória, teve uma abertura, como era de se esperar, cheia de sumidades nacionais e internacionais, de holofotes, beijinhos, simpatias e gestos psicanalizados, homenagens póstumas, panegíricos mútuos, intelectualismos e professorismos multiscientes com frases multisignificantes e até enigmáticas que obrigavam a platéia, rigorosamente iniciada na arte de desfrutar do texto e do gozo da significação, a dar saltos e cambalhotas na história, indo de Freud e Klein a Vinicott, e de Lacan e Foucault a Dèrrida. Uma platéia de umas 500 pessoas, (croatas, paquistaneses, suiços, italianos, franceses, argentinos. mexicanos, norte americanos...) que aportou no Rio de Janeiro para, com os colegas brasileiros, retomar nestes quatro dias as intermináveis discussões sobre o inconsciente, sobre os sintomas, a dor, o sofrimento, tudo o que diga respeito a subjetividade contemporânea e ao mal estar das sociedades modernas, cada uma com seus paradoxos deprimentes e com sua democrática banalização do fútil e da crueldadeŠ Quatro dias de discussões e reinterpretações intermináveis, ora sobre a "armadura sagrada da sintaxe", ora sobre o furacão de gozo que a linguagem, em si, proporciona. Discussões sobre a ética tanto na transmissão como na prática psicanalitica, sobre as relações da psicanálise, como possibilidade de crítica, com o Estado e a política; da psicanálise com a psiquiatria e com as neurociências, com a mídia, com a cultura em geral e mesmo com a verdade que supostamente busca. Enfim, um show de erudição e uma verdadeira overdose de saber, acumulado da prática clínica e da obsessão livresca. Digressões sobre significados e significantes; sobre objetos do desejo e desejos por objetos; sobre a moda ligada à anorexia e a um corpo persecutório; sobre i dinheiro como objeto libidinal; sobre o gozo e suas mais disfarçadas formas de interdiçãoŠ Também se insistiu na questão da pulsão de poder, do narcisismo imperante, do barbarismo político pós-moderno, das democracias melancólicas, do fundo paranóico das guerras e do terrorrismo, enfim, das psicopatias governamentais que têm marcado forte presença neste período pós queda do muro de Berlim e pós 11 de setembroŠ E tudo na tentativa de inventar uma nova praxis psicanalitica, o mais distante possível daquela arcáica e conservadora marcada por um poder autoritário que, nos anos 60, aqui no Rio, chegou a dar lugar e voz a um conhecido colaborador da ditadura militar. E tudo com a pretensão de criar uma outra clínica, talvez até nômade, que tenha um maior alcance político-social, que não seja apenas um instrumento de pesquisa para se confirmar o que já se sabe, que possa ser incrementada e disponibilizada nos ambulatórios e nas comunidades, para aquelas pessoas que, num contexto cada vez mais caótico, são obrigadas a viver de forma concomitante, no centro de um vendaval civilizatório e no âmago da barbárie, pessoas que, de um dia para outro, imersas nesse meio sistêmico de angústia, num determinado dia se desestruturam, sucumbem ao sofrimento de processos mentais devastadores e que para as quais, os serviços de saúde existentes pouco ou nada podem fazer.

A cada final de tarde um conferencista de «reconhecido saber» relaxa e deleita o público com temas mais literatos, filosóficos e mais políticos do que psicanalíticos. Até Marco Aurélio Garcia, assessor da Presidência da República, esteve presente e invocou a importância da psicanálise na desconstrução dos mitos que oprimem na atualidade. Mesmo que não se diga com todas as letras, parece unânime o sentimento de que o Estado segue sendo um monstro. Foi curioso ouvir e ver o filósofo italiano Antonio Negri, ex militante das Brigadas Vermelhas, com sua gestografia típicamente romana, ironizando o capitalismo triunfante, fazendo filosofia política e insistindo na idéia de imanência perante uma seleta e atenta elite... Sua revelação acidental e emocional de que não acreditava no inconsciente, isto é, no Deus da psicanálise, não causou na platéia o espanto que era de se esperar. Já a fala do escritor paquistanês Tariq Ali , na parte referente ao sionismo e ao conflito Israel/Palestina, detonou angústia e indignação entre os psicanalistas judeus... lembrando a todos, que algumas categorias de traumas parecem ser incuráveis. No domingo, um pouco antes do encerramento, o diplomata Rouanet, que recentemente publicou Os amigos de Freud, discorreu sobre psicanálise e cultura.

De vez em quando, no meio de um acalorado debate semântico ou hermenêutico, me permitia divagar ou pelos labirintos da história ou pelos becos da cidade. O que diria Freud se estivesse aqui presenciando o desdobramento de suas idéias, de suas teorias e até mesmo de seus equivocos? Que pensaria se tivesse dado uma volta lá pela Cinelândia ou pelos arredores deste luxuoso hotel, onde cruzaria invariavelmente com a fina flôr do lôdo humano, com a histeria esperançosa da classe média domesticada e com o horror niilista das multidões miseráveis? Cinco ou seis indigentes bébados nas escadarias da Biblioteca Nacional põem em dúvida a tese de Barthes de que o lugar mais erótico de um corpo é lá onde o vestuário se entreabre... outros três amontoados sob os arcos da Lapa, outros fucinhando um latão de restos, um outro caído sobre uma poça de sangue entre as rodas de um ônibus desgovernado. A fumaça dos escapamentos, o sol de 40º graus, a lábia e o instinto de morte dos meninos de rua querendo roubar-lhe a bengala. Que pensaria Freud se, num final de tarde, tivesse visitado os hospitais psiquiátricos da cidade? Lido os jornais e visto o resultado do tiroteio de ontem a noite no Morro do dendê? Que diria o velho vienense se tivesse circulado de madrugada pelos inferninhos ou pela rua Augusto Severo congestionada de travestis, pelas galerias do Bangú III ou precisado usar com urgência a toilete de um boteco? No centro da cidade, a desordem deprimente do sebo Édipo Rei o teria deixado irritado e ao mesmo tempo curioso para saber os limites exatos de uma alma sem interesseŠPor fim, fatigado e confuso, a confeitaria Colombo lhe encheria o coração de nostalgia e enquanto devorava dois ou três pasteis de avelã, repetiria em pensamentos a frase que um psicanalista havia mencionado lá no auditório: já que não se consegue ver claro o claro, vamos tentar, pelo menos, ver claro as obscuridades.

Ezio Flavio Bazzo