Nascido em 1881 à rua do Hospício, e fulminado por um colapso cardíaco 39 anos depois, no Catete, João do Rio conseguiu, mesmo neste curto período, construir uma obra densa e admirável.
Mergulhando deliberadamente nas ''sombras cúmplices da madrugada urbana'', no ''mundo opaco e indeciso'' e no ''mar alto da depravação'', onde sempre fervilha ''gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua'', engendrou, à revelia dos sedentários e dos invejosos, uma literatura magnífica e diabólica, uma (quase) antropologia laica, uma sociologia selvagem, empírica e anárquica... livre tanto das algemas escolásticas como das pretensões da gramática ortodoxa... que, como uma ''Górgona de vício, à beira das igrejas, abria a fauce tragando as flores da ralé''. Que só tenha descoberto sua existência agora, depois de uns 35 anos de leitura e de freqüência obsessiva em sebos, alfarrábios e feiras de livros, é uma evidência, não só da gravidade de minha cegueira, mas de quão tendenciosa, parcial, falsa e fútil tem sido tanto nossa cultura literária como nosso mercado editorial.
Seu interesse pelo âmago das cidades, pela histeria permanente das ruas, pela vida mundana e conseqüentemente pelos seus atores: fanáticos religiosos, azeiteiros, cabotinos, pedófilos, cínicos, mendigos, pervertidos, larápios, presos, criminosos, imigrantes, charlatães, poetas, músicos, variolosos, em suma, pelo ''sistema social podre'', lhe renderam não só calúnias, mas socos, bombas e acusações literárias como esta, de Elisio de Albuquerque: ''É um temperamento doentio, sensibilidade exacerbada, usa de uma psicologia mórbida, atormentado pela preocupação do raro, do horripilante e até do sórdido''.
É evidente que os pobres moralistas tinham dificuldades para suportar um sujeito que, além do talento inegável, seguia afirmando que ''Toda a vida é luxúria. Que sentir é gozar, e que gozar é sentir até o espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante. Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de pornéia. As turbas estrebucham. Todas as vesânias anônimas, todas as hiperestesias ignoradas, as obsessões ocultas, as denegerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebolam, sobem na maré desse oceano. Há histéricas batendo nos peitos ao lado de carnações ardentes ao beliscão dos machos; há nevropatas místicas junto a invertidos em que os círios, os altares, os panos negros dos templos acendem o braseiro, o incêndio, o vulcão das paixões perversas.''
Dizem os jornais da época que seu funeral mobilizou cem mil pessoas. Que os taxistas, emocionados, se prontificavam a transportar, de graça, quem quisesse seguir o féretro daquele homem que, sabia-se, ''amava o horror das coisas inacreditáveis''. Qual o autor nacional, por mais vaselina e plantador de vaidades que tenha sido, que já teve tamanho privilégio? Bobagem? Sim. Mas impressionante! Mesmo que essa multidão quisesse, morbidamente, apenas certificar-se de que havia realmente morrido (um veado e um filho de puta a menos no mundo!), mesmo assim é um número que impressiona. E insisto nisso porque a grande maioria dos escritores que morrem hoje em dia — mesmo os que se faziam passar por ícones da sapiência, os que passaram a vida lançando confetes aqui, serpentinas acolá, fazendo conchavos na academia, cumplicidade nas universidades e puxando o saco à torto e à direita de quem quer que fosse, mas principalmente dos endinheirados — além dos herdeiros e dos credores, só têm recebido ''postumamente'' a visita oportunista dos abutres da funerária.
João do Rio (Paulo Barreto), que chamou atenção para a vida encantadora das ruas, que não teve medo de acanalhar-se e nem de enlamear-se nos becos onde ''os corpos movem-se como as larvas de um pesadelo'', morreu de forma inusitada aos 39 anos, num táxi. Num velho táxi que circulava pelas ruas do Catete. Deixou uma obra fascinante, curiosa, lúdica, saborosa, nômade e, mais do que tudo, vagabunda... construída na clandestinidade, nos esgotos periféricos, à beira dos cortiços, na penumbra das antigas salas de redação dos jornais... e, inclusive, nos festins colonialistas das elites da época... onde ''as caras continuam emplastradas pelo mesmo sorriso de susto e de súplica, multiplicado em quinze beiços amarelos, em quinze dentaduras nojentas, em quinze olhos de tormento!'' Paradoxalmente, foi também um membro da Academia Brasileira de Letras... O primeiro a entrar naquele covil envergando o fardão vampiresco, aquela capa negra que mais desqualifica e que mais mumifica do que engrandece... ''A luz elétrica, muito fraca, espalhava-se como um sudário de angústias.'' Teve sérios conflitos com a vaidade estabelecida daqueles ''literatos'' que, por não terem nada que dizer e por não possuirem um mundo próprio, só falavam de literatura. Viu-se envolvido com a hipocrisia dos escritorzinhos... e com o rancor incurável que se prolifera à sombra das ''pocilgas literárias''... entre a turma das unhas pintadas e dos cuecões de seda... Entre os da laia narcísea dos conhecidos ''textos-super-limpos'', ''burilados'', ''impecáveis'', otimistas e estóicos... escritos sempre para os jurados de concursos, para as grandes editoras, para o clero e para os chefetes de turno no Congresso Nacional... instâncias onde ainda predomina intacta a mesmice secular, o tédio reacionário, o discurso prolixo, a metamorfose do caráter, a corrupção endêmica, a frouxidão genital indisfarçável e a necessidade histórica de perpetuar, miseravelmente, o jogo da burrice e de submissão entre o populacho... Que lástima a sobrevivência desse circo!... ''o clamor da súplica enche o quarto na névoa parda estrelejada de hóstias sangrentas''.
O que me atrai em sua obra, independente da beleza natural dos troteadores e dos ''rueiros'' é basicamente seu cinismo e seu deboche. A forma ora sutil e ora escrachada como cospe sobre a rabugice e a infâmia humana... Vibro com a tormenta de metáforas que inventa para descrever, não só a cloaca e o lupemproletariado mantido à margem (depravados, escravos, sádicos, jogadores, maxixes ordinários, coristas, putas, desempregados opiômanos) mas também a cloaca de colarinho branco (barões, condes, atrizes, políticos, charlatães, damas da recém-instalada república). Se foi um plagiador — como dizem —, um entreguista político, um ''portuguesófilo'', um decadente moral, um fresco e um dândi... isto, aqui, não tem a mais mínima importância. Se fez subliteratura, se foi, como outros, um ''pavão simbólico do Vício Triunfal'', se fez confusão entre um gênero e outro, se seu texto, além de ''empolado'' estava cheio de delitos gramaticais... isto tampouco diminui ou compromete seu fascínio e sua beleza. Não altera em nada o ângulo privilegiado através do qual ''escutava'' e fitava a urbe enfurecida e em delírio... Principalmente porque ele mais do que ninguém, sabia e afirmava que a ''literatura é o mirífico agente do vício''.
Ezio Flavio Bazzo