sábado, 23 de janeiro de 1999

Fragmento erotico


Estávamos casualmente na mesma fila. Nos olhamos, trememos dos pés à cabeça. Ela bem mais jovem do que eu, uns vinte e cinco, no máximo. Aquele tipo de menina que você sabe de antemão o que leva por debaixo das roupas. Ali mesmo beijei-lhe as costas nuas. Ela ficou imóvel, como uma estátua do Kamasutra hindu. O cartão de crédito preso delicadamente entre os dedos, finos, limpos, sem nenhum vestígio daqueles cremes pegajosos que as mulheres gostam de usar.

Saquei cinqüenta reais, ela sacou quatrocentos. Saímos em silêncio, lado a lado, até seu carro estacionado junto ao meio fio do Teatro. Entramos e ela beijou-me longamente a boca, os dentes, a língua, aponta dos dedos. Mandou-me colocar o cinto e rumou para a Esplanada dos Ministérios. Lembro-me bem que, quando passamos em frente à Catedral, eu já estava com a mão direita enfiada dentro de sua calcinha de seda, um pouco folgada... Os quatro apóstolos de mármore pareciam de vidro e levitavam no meio das nuvens... Ministério da Reforma Agrária... depois o MARE... depois o Ministério da Saúde.... Alguns turistas de boca aberta diante do Itamarati, ciclistas, um fotógrafo japonês buscando ângulos... O carro parecia não ter motor... Era um sábado, umas onze horas da manhã...

Entrou no estacionamento do Congresso Nacional e parou à sombra das palmeiras. Acompanhe-me, murmurou, quase sem voz. Dois gansos deslizavam maliciosamente sobre as águas, subimos a rampa, o guarda ficou com a identidade dela e nos embrenhamos por aqueles corredores impessoais, frios, desertos. Num determinado momento ela parou uns segundos para bolinar-me a baguete já meio molhada. Subimos umas escadas, dobramos à esquerda, depois à direita, mais adiante à esquerda novamente e eis que estávamos diante da porta do gabinete de um Senador da República. Quando li o seu nome, senti que ia broxar, mas assim que ela abriu a porta e nos refugiamos lá dentro, relaxei por completo. Cheiro de cigarro, uma térmica aberta, copos de cristal com restos de vinho branco. Ainda na ante-sala, lançou-se sobre mim como uma paixão que nunca havia visto antes. Colocou-se de joelhos para morder-me o pau por cima das calças. Depois, em pé, abriu os botões de sua blusa verde abacate e levou minha boca até seus seios... Não sei como, mas lembro que ouvi, exatamente nesse momento, um relógio badalar doze horas...

Nos arrastamos para a sala do lado, uma sala bem maior, com uma janela semi-aberta, uma cortina branca e, para minha surpresa, no centro da parede do fundo, uma foto imensa do tal senador, seu avô. Não tive dúvidas de que aquele rosto em preto e branco, e aquele olhar ao mesmo tempo servil, arrogante, cínico e coronelesco me intimidava. Sobre a mesa um corta-papel de puro ouro, uma Constituição com capa vermelha, o Código Civil e oito ou dez cartas, abertas, com frases sublinhadas em amarelo... O sofá de couro, apesar de cômodo, grudava exageradamente em nosso corpo suado e identifiquei nele, de imediato, o cheiro inconfundível de políticos e de correligionários de todas as naturezas... Ela estava praticamente desfalecida... Já como uma ave ferida, ia e vinha por todos os continentes de meu corpo mas como quem já não tem mais comando de si mesma... De minha parte, se ainda não tinha gozado, o devia, até certo ponto, àquele ambiente mórbido... e, basicamente, àquela foto... Do sofá para o piso, na vertical, na horizontal, de joelhos, de costas, 69, cadeira chinesa...

Depois, completamente fora de mim, tomei-a nos braços e a levei delicadamente até a mesa do Senador... Lembro que seu corpo branco, nu, suado e excitado contrastava inteiro com aquela mesa de mogno... Ela mordia minhas mãos e depois as levava para o meio de suas pernas. Abria com meus dedos a porta de seu tesouro para que eu sorvesse suas riquezas... Dizia frases perdidas, apaixonadas e desconexas... Ah, e foi naquele momento que descobri que as mãos não foram, em hipótese nenhuma, feitas para o trabalho... Pedia, implorava, suplicava minha língua... E quando eu a atendia pronta-mente, ela implorava a penetração... mas, com um pormenor: queria que eu o fizesse recitando uma poesia da portuguesa Florbela Espanca... Senti horror dessa idéia. Não que eu seja radical, mas a poesia da Espanca era, para mim, algo horrível, carola, incompatível com qualquer trepada...

O senador estava atento. Assistia incólume um eleitor anônimo enrabando sua neta, ali, justamente ali sobre suas pastas e agendas republicanas... O silêncio era absoluto, não fosse a fúria de nossos músculos que se chocavam. Estou em pé na beira da mesa... entro e saio de seu corpo como um meteoro que sabe o dia e a hora que chegará ao seu destino. Não era possível que alguém já tivesse sentido tanta felicidade....Ela geme, me faz elogios inesquecíveis, reclama uma poesia... Neguei-me rotundamente a recitar a poetisa lusitana... Pensei em Octavio Paz... em Borges... em Jalal Rumi... Mas e se ela tivesse preferência pela poesia de uma mulher? Cora Coralina?... Alma Mahler?

Sinto que vou gozar... Porra! Por quê toda ejaculação é precoce?Por quê o gozo não é lento como as filas do INSS? E isto será um MAL ou um BEM? Não importa. Só queria que este, pelo menos este, se prolongasse até o ano 2000. Em meio à loucura orgásmica, seis linhas ficam de prontidão em minha garganta. Começo a gritá-las, para ela, para mim, para o cataléptico, reacionário e corrupto Congresso Nacional:

O Amor? Ele usa duas falsas asas.

Suas flechas são garras.
A coroa encobre pequeninos cornos.
Ele é, também, sem dúvida alguma,
Como todos os deuses da Grécia,
Um demônio disfarçado.

Disritmia! Prolapso da válvula mitral... Esperei o tempo suficiente para recuperar-me, bebi os restos de vinho que havia nos copos, enquanto ela permanecia inerte, os olhos bem abertos, as pernas encolhidas sobre a mesa vazia. Tudo o que havia ali, quando chegamos, agora estava jogado e disperso pelo piso. A Constituição junto com meus sapatos, o Código Civil completamente desfigurado, as cartas, como se sobre elas tivesse sido derramado um tubo de cola... No meio dos oito ou nove livros impecavelmente arrumados no armário, curiosamente, identifiquei o Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir. Procurei por quase meia hora o cortador de papel em puro ouro, enfiei-o no bolso, pisquei para o Senador e saí para a Esplanada dos Ministérios, sob o sol tórrido das 15 horas, cantarolando aquele slogan hipócrita do governo: "não dê esmolas, dê cidadania!"

Ezio Flavio Bazzo

Extraído do livro Lênin nos subterrâneos do CONIC

Dymphne: a santa dos loucos e a comunidade psiquiátrica de Geel


[Meus pesadelos mais terríveis são aqueles onde me vejo
refletido num espelho - com uma máscara no rosto]
J.L.Borges

A comunidade psicoterapêutica de Geel, situada a uns quarenta quilômetros de Antwerpen, na Bélgica, e em funcionamento desde o século XII, é conhecida tanto como o "paraíso dos loucos" como a "cidade misericordiosa", cuja padroeira é a santa Dymphne, aquela que e que conforta os "insensatos". Atualmente com seus trinta mil habitantes, Geel é a mais antiga colônia familiar que se tem notícia, dedicada ao acolhimento e tratamento de doentes mentais. Apesar de hoje não se encontrar, aqui quase nenhum vestígio virtual daquela época, época em que os "loucos" vinham em peregrinação de todos os lados, em carroças ou a pé, acorrentados ou soltos, aos gritos ou em total mutismo, quase sempre "enfeitiçados" ou "possuídos pelo demônio", etc., o sistema de acolhimento, de relacionamento e de tratamento, apesar de modernizado e institucionalizado, ainda conserva a mesma filosofia daqueles tempos. Aqui os doentes mentais ao invés de confinados em instituições fechadas, ficam alojados em casas de familias no interior da própria comunidade. Como norma, esse internamento familiar é temporário, mas tornou-se comum os pacientes acabarem vivendo por aqui para sempre. Considerado até pouco tempo atrás como o único local do mundo, onde os pacientes dispunham de um internamento familiar, o sistema de Geel tem ultimamente servido como modelo para aqueles países que lutam para oferecer condições mais "humanas" e mais "dignas" às pessoas que sofrem de algum tipo de transtôrno mental.

A lenda de Dymphne, surgiu por primeira vez em latim, em um documento datado em 1247. Cheia de significados incestuosos, edipianos e místicos, a lenda parece não ter ainda sido explorada como era de se esperar. Dymphne, filha de um rei irlandes, viveu no final do século VII. Apesar de seu pai ser pagão, ela, através da mãe, foi batizada e educada na fé cristã. Após a morte da esposa, decidido a encontrar uma mulher tão linda como ela, mas não encontrando em seu reino ninguém que o satisfaça, o rei resolve casar-se com a própria filha. Quando Dymphne toma conhecimento do desejo incestuoso do pai, fica escandalizada e foge para a Bélgica juntamente com um padre de nome Gerebernus (o mesmo que a havia batizado), o violinista do reino e a esposa deste. Chegando a Antwerpem, por precaução, vão refugiar-se no campo, numa cabana que eles próprios constroem, próximos ao vilarejo de Geel, local onde mais tarde é descoberta e decapitada pelo pai.. Seu corpo foi enterrado ali mesmo, próximo a uma capela dedicada a São Martin. Mais tarde quando os nativos desenterraram seu corpo para transferí-lo para a igreja, perceberam que os ossos estavam protegidos e recobertos por um material desconhecido na região. Da conclusão de que Dymphne havia sido enterrada ou pelo menos protegida pelos anjos, advém tanto a necessidade de considerá-la Santa como a de invocar sua proteção, principalmente contra as doenças mentais, já que ela havia sido vítima do
, seu pai. A partir de então, começam a chegar peregrinos de todos os lados para suplicar cura à Santa Dymphne. Os doentes chegavam a Geel e eram conduzidos a um pequeno barracão construído ao lado da igreja, conhecido por quarto dos doentes ou Liber Innocentium onde permaneciam por nove dias, sob "tratamento": penitências, rezas, expiações religiosas, exorcismos. etc,. Terminada a novena, independente do doente estar ou não, ele voltava para sua família ou permanecia alojado, albergado ou internado junto às famílias e aos próprios moradores da vila. Em muitos casos, os pacientes passaram a viver definitivamente em Geel, criando assim, de maneira espontânea, uma alternativa para os então tenebrosos tratamentos que eram aplicados aos enfermos da mente. Pela dedicação e compreensão que Geel, sob forte influência e domínio religioso dispensa aos doentes mentais, passa a ser considerada a "cidade misericordiosa", e inaugura assim o que hoje se conhece por tratamento familiar terapêutico, uma maneira interessante e eticamente digna de se lidar com a controvertida questão da "loucura". E é importante notar que o sistema psiquiátrico implantado em Geel naquele tempo, antecedeu, e em muito, a revolução psiquiátrica levada a cabo mais tarde, pelo Dr. Pinel, na Salpêtriere. É evidente que a realidade de Geel deve tê-lo influenciado.

Podem ser internados em Geel pacientes de toda a Bélgica, uma vez que as normas básicas exigidas pela comunidade sejam atendidas. Vejamos os passos principais para o acolhimento de um doente:

(a) A admissão dos pacientes:
As instituições que desejam fazer o encaminhamento, devem antes avaliar se o comportamento social do candidato é conciliável com as normas de tolerância da comunidade local; as questões de seguro/saúde do paciente devem estar em dia, para que questões financeiras não venham interferir na importante integração do doente com a família que o aloja. Ao chegar no Hospital Central, o paciente passa por uma seleção e por um contrôle rigoroso antes de ser encaminhado para o internamento familiar. Os relatórios enviados pelo hospital psiquiátrico ou pelas instituições que estão encaminhando o paciente a Geel, relativos à situação psicológica, médica e comportamental do doente, constituem o ponto de partida da seleção. Quando isto não é suficiente, o paciente fica sob a observação do "Comitê de Internamento", composto por médicos, sociólogos, psicólogos e psiquiátras. Após a indicação favorável ao internamento familiar, é ouvido o paciente e seus familiares. Em seguida o paciente e a família que o alojará são apresentados, entram em acordo e o internamento é imediatamente efetuado. Quando necessário, é colocado em prática um processo de integração.

(b) As famílias que alojam os doentes:
As famílias que se propõem a alojar um ou mais doentes mentais em suas casas são famílias comuns da região e das origens sociais mais variadas. Frequentemente são pessoas acostumadas, desde a sua infância, a visitar ou até mesmo a conviver com pessoas portadoras de algúm tipo de doença mental, e que não vêem nenhum tipo de impedimento nem de risco nesse tipo de convivência. São famílias que normalmente dispõem de um quarto para alugar, que necessitam complementar sua renda financeira ou mesmo que estão dispostas a tornar menos monótono o seu cotidiano. Depois de candidatar-se junto ao hospital, a família passa por uma entrevista onde vai se verificar a localização e as condições de sua casa, o seu comportamento social, a presença ou não de eventuais doenças transmissíveis, sua vida familiar, etc.

(c) Como é feito o atendimento:
O município de Geel é dividido em 15 bairros e cada um deles é atendido por equipes específicas, que se deslocam diariamente em transporte particular ou coletivo para supervisionar e dar assistência aos 800 pacientes que vivem distribuídos por todos os bairros. A esta supervisão feita pelo médico e pelo enfermeiro cabe fundamentalmente observar o modo de coabitação do doente no seio da família bem como seu estado de saúde, tanto física como mental. Os medicamentos necessários são fornecidos pela instituição central, bem como quaisquer outras formas de terapias que sejam recomendadas, tais como: terapia da motricidade, kinésiterapia, logopedia, ergoterapia e terapia criativa. Também podem ser recomendadas psicoterapias, em grupo ou individuais, que podem ser ministradas no hospital central ou em uma das casas do bairro. Os pacientes podem solicitar assistência ao hospital central durante as 24 horas do dia, tanto para uma simples consulta como para um internamento de urgência. Enfim: ações integradas, uma política e uma filosofia de saúde parecem, por si só, facilitar o
e, como escreveu Pierre Morel, fazer com que o destino trágico da pobre Dymphne não tenha sido em vão.
Para nós, no Brasil, que ainda não conseguimos nos livrar completamente de nossos manicômios medievais, é impossível conhecer a comunidade terapêutica de Geel sem sentir por ela um imenso respeito. E ela pode até nem ser o
e muito menos a , como a denominaram durante centenas de anos, mas é, sem sombra de dúvidas, um modelo de atendimento público em saúde mental digno de qualquer país verdadeiramente civilizado.

Ezio Flavio Bazzo