quinta-feira, 23 de janeiro de 1997

Intelectuais e o truque da mistificação mutua


"Não é o homem que é desprezível,

mas aquilo que ele pensa"


(Cioran)


Num planeta praticamente dominado por brutamontes e especialmente num país cuja população básica é de analfabetos, ninguém deve se horrorizar ao perceber que aqueles sujeitos que possuem um conhecimento mediano, que falam idiomas e que sabem recitar Adam Smith, Marx ou Santo Agostinho sejam considerados pequenas divindades, gênios, estadistas, intelectuais etc. Foi assim nos tempos das cavernas, no período negro do medievalismo, nos séculos mais recentes e, o pior, o é ainda hoje e com a mesma ingenuidade.



Um caso clássico e exemplificador do que escrevo, pode ser o daquele simpático senhor e ex-presidente que, apesar de ser um caso típico de inteligência mediana, continua sendo exibido por seu staf como sendo um superdotado, como um herói do poliglotismo e como um honoris causa das principais universidades modernas do mundo. Para que esse espetáculo tenha êxito, todos sabemos, basta dispor de um ator com boa memória, da cumplicidade dos meios de comunicação e, lógico, das chaves do poder. 

Se entre os gangsters regionais e internacionais existe uma visível conivência, um corporativismo militante e uma cumplicidade incondicional, no mundo intelectualóide da política e principalmente do politicismo, existe algo ainda pior: um pacto de promoção mútua. O presidente da Argentina, por exemplo, queima incenso ao presidente da Venezuela; o da Venezuela, por sua vez, faz panegírico ao da Bolívia; o da Colômbia diz que o do Brasil tem um passado honrado e que é um sábio, enquanto este reverencia submisso o da Alemanha ou o dos EE.UU. etc, etc. Filósofos elogiam filósofos; governadores aplaudem governadores; doutores defendem doutores, bispos santificam outros bispos e assim se eterniza o espetáculo nas esferas da diplomacia-vaselina e da politicagem mais vomitiva, enquanto o populacho e a manada, destruídos pelo inferno da ignorância, ruminam utopias ou despencam na depressão.


Quem tem a mínima vivência acadêmica internacional sabe muito bem como funciona esse marketing e como os intelectuais-políticos ou os políticos-intelectuais agem para mistificarem-se mutuamente. 


-Fulano de tal da Sorbonne convida o Sicrano de tal da USP para «dar uma conferência», para que logo em seguida o Sicrano da USP convide o fulano da Sorbone para um «simpósio». Nos tais eventos artificiais ou fictícios, como era de se esperar, não aparece ninguém, mas como o que importa para os dois lados é o «teatro em sí», o curricullum Lattes e o folclore do saber, tudo é devidamente vivenciado como se fosse algo sério, uma praxis ética e até revolucionária... 


Beltrano de tal do centro X de pesquisa publica uma resenha do fulano de tal do Instituto Y, para logo em seguida receber deste uma bolsa de pesquisa, honorários, títulos, promoções, passagens etc. Se não produzem praticamente nada de aproveitável para a ciência, para seus países e muito menos para as manadas silenciosas, pelo menos passam bons momentos nos melhores hotéis, restaurantes e aviões do mundo, faturando em Euros e sempre fazendo de conta que estão dedicando a vida a um projeto humanista. 


Um filósofo escreve no Le Monde que outro filósofo é uma genialidade e logo em seguida o Outro lhe retribui com gratidão na "Folha de São Paulo" afirmando que aquele é a revelação do século... 


E assim, numa espécie de ping-pong pederástico, esses sabichões vão driblando as massas distraídas e sugando até o último centavo dos cofres nacionais e internacionais, supostamente destinados aos programas científicos e culturais. E depois, quando se cansam dessa mamata, então se aposentam: um pé na igreja e outro na universidade; uma nádega num ministério e outra numa multinacional. Com um capital suculento e com aposentadorias compatíveis com a deslealdade exercida durante tanto tempo, é evidente que não ficam vivendo aqui. Vão imediatamente viver em Genebra ou em Washington. Abandonam a África, o Leste Europeu, a Ásia ou a América Latina que lhes pagou ou que pelo menos justificou seus privilégios e vão viver no frescor suíço ou na viadagem de Nova Iorque, certos de que "cumpriram com sua missão". E o pior: nos jornais dessas nações pobres, míopes e miseráveis que sustentaram esses gatunos, os articulistas-filósofos da ativa, numa demonstração clara de corporativismo e de fidelidade classista, de vez em quando ainda usam uma página de seus jornais para clamar devotamente:


-No tempo do Fulano de tal!

-Que barbaridade! O Brasil continua perdendo seus melhores talentos!

-Estamos indignados! O terceiro mundo não valoriza os seus mais bem dotados cidadãos!

-Meu Deus! Que triste é ver o êxodo de todas essas genialidades! etc, etc.

E as massas de leitores semi-analfabetos deliram! Amam o cinismo posto em prática. Admiram essa troupe facínora que cita de cor tanto o velho Golbery como o Papa Pio XII e que enquanto embolsa propinas ou comunga, jura que dedicará toda sua vida à emancipação cultural e econômica dos fodidos e dos alucinados da terra.


Sim, a classe média, os assalariados e os licenciados se identificam com esses furúnculos da sapiência, se prostram ao ouvir uma frase em inglês, um versículo em hebraico ou uma citação de Hegel em alemão. Adoram as gravatas coloridas, os topetes grisalhos, os gestos teatrais do covil.


E o pior, é que ainda em pleno século XXI, o que se observa verdadeiramente na praxis de todo esse circo de quinta qualidade é, por um lado, que nenhuma força parece ser suficiente para coibir essa farsa generalizada, esse blefe sobre a sociedade e sobre si mesmo, e por outro, que o mundo, esse planeta desvairado, vai rapidamente tomando a forma de um imenso e lúgubre sanatório, que se distrai apenas com o cacarejar insano de seus dementes.

Ezio Flavio Bazzo