segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Esfaquearam um sem-teto...

"Observou de perto uma galinha viva, imaginou-a aumentada até o tamanho de uma vaca, e descobriu que era um monstro muito mais aterrorizante que qualquer outro da terra ou da água..."
Garcia Marquez
(Do amor e outros demônios)

Ontem esfaquearam um sem-teto ao lado do mercado de hortaliças. Sempre o vejo mendigando ali, disputando sobras com os cachorros, recolhendo fragmentos de pizza de uma lixeira improvisada e até fazendo la siesta num sofá aos pedaços que alguém instalou em baixo de um abacateiro. Eram mais ou menos cinco da tarde. Os atendentes das farmácias da rua, os verdureiros, os moradores do primeiro andar, uma professora de astrologia, outros mendigos, transeuntes aposentados e uma senhora que vende brotos de bambu... todos formaram espontaneamente um circulo ao redor do esfaqueado que quase impedia o trabalho dos bombeiros e da polícia. Com cara de nojo, assistiam o estado miserável daquele sujeito e o sangue, até com aspecto saudável, jorrando. Por entre as coxas de uma mulher obesa, ainda jovem com duas tranças que lhe chegavam até a altura dos rins, consegui ver que era o lado direito dele que sangrava. E ele, com um bonezinho tipo o dos sem-terra, olhando a multidão de baixo para cima, mantinha um sorriso tímido, heróico e quase cínico nos lábios. Se pudesse, talvez entrasse na paranóia do mundo e jurasse para os curiosos que havia sido um atentado. Sirenes. Chegaram mais bombeiros com uma maca vermelha, tipo as de guerra, esparadrapos, um rolo imenso de gase hospitalar, uma garrafa de éter para higienizar as mãos. Fotografaram o moço antes de qualquer coisa. Ele gemeu meio fingidamente ao ser virado na calçada. Levava um escapulário no pescoço. Parecia feliz! Apalparam o ferimento, retiraram os coágulos que haviam se formado um pouco acima da cintura, o enfaixaram, o amarraram na maca e o transportaram para a ambulância. Vi novamente seu rosto de perfil e não tive dúvidas: estava feliz.  Quando ouviu a sirene aumentar o volume e preparar-se para partir, ensaiou um tchau para a platéia e seus olhos brilharam... Talvez tenha sentido que aquela era a primeira vez na vida que uma multidão o olhava com uma certa compaixão... A primeira vez que tenha se sentido participante deste imenso circo e hospício que é a vida. A faca que lhe havia furado as tripas era apenas um detalhe...

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