segunda-feira, 17 de julho de 2017

Do porvir de uma ilusão...

Com o frio que está fazendo aqui na cidade, a mendigada desapareceu. Os que não morreram por aí nas tocas dos esgotos ou nas esplanadas do Niemeyer... pegaram uma carona para seus estados de origem ou foram recolhidos por uma beata ou outra para algum albergue, algum asilo, alguma garagem abandonada, onde permanecem tomando leite quente com canela como crianças pródigas, ansiosos e em busca de algum raio de sol, enrolados em trapos e em cobertores, batendo os queixos e esperando pela volta do verão... O mendigo K foi uma exceção. O encontrei na parte inferior da rodoviária no meio da polui
ção dos ônibus e do burburinho dos frequentadores insanos daquele local. Estava enfiado dentro de um casacão daqueles dos soldados russos que se pode comprar nas feiras hippies por uma bagatela. Ao me ver fez logo uma pergunta, com ar de desafio: Quê dia é hoje? Como não lhe respondi, voltou a perguntar: Em que mês estamos? Como também não lhe respondi agregou: não quer responder ou já está demente?  Quantos anos você tem? Estava com o livro de  Luis Buñuel (O último suspiro) aberto entre as mãos e convidou-me a  ouvir um texto que, segundo ele estava na página 9, a respeito da memória. Antes de começar a leitura do parágrafo que estava sublinhado com letra vermelha, bradou, dirigindo-se mais para a turba do que para mim: este é um livro que ninguém pode deixar de ler. O texto tratava da memória, da demência e da amnésia da mãe de Buñuel. Começou a leitura, verdadeiramente emocionado: "Nos dez últimos anos de sua vida, minha mãe, pouco a pouco, perdeu a memória. Quando ia vê-la em Saragoça, onde ela morava com meus irmãos, acontecia que lhe déssemos uma revista, que ela folheava cuidadosamente da primeira à última página. Após o que, tomávamos a revista de suas mãos, para oferecer-lhe uma outra, que, em realidade, era a mesma. Ela se punha novamente a folhear com o mesmo interesse. Chegou ao ponto de já não reconhecer seus filhos, de já não saber quem éramos nós, quem era ela. Eu entrava, beijava-a, passava algum tempo a seu lado - sua saúde física se mantinha intacta, ela se mostrava até bastante ágil para sua idade -, depois tornava a sair, retornava imediatamente, me recebia com o mesmo sorriso, pedia que me sentasse, como se me estivesse vendo pela primeira vez, já não sabendo, aliás, nem mais meu nome..."
Fez uma súbita interrupção e perguntou-me agressivamente: quer maior desgraça do que esta?
Voltou a abrir o livro na mesma página e concluiu: quer angústia maior do que  esta? estar vivo, mas já não reconhecer-se a si mesmo, já não saber quem se é?
Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, não somos nada..."
Concluiu a leitura e desapareceu no meio da fumaceira que escapava do motor de uma daquelas velhas geringonças...

4 comentários:

  1. La memoria es invadida constantemente por la imaginación y el ensueño y, puesto que existe la tentación de creer en la realidad de lo imaginario, acabamos por hacer una verdad de nuestra mentira. Lo cual, por otra parte, no tiene sino una importancia relativa, ya que tan vital y personal es la una como la otra. Luis Buñuel - Mi último suspiro

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  2. Respostas
    1. Parece que ainda existe alguns na Estante virtual

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    2. Download em espanhol http://ebiblioteca.org/?/ver/98453

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