terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

"A realidade é a manha, a astúcia que cada um põe em jogo"... Raul Brandão

Aqui do meio das tumbas do Cemitério da Ajuda, além dos jazigos com suas bizarras declarações de culpa e de amor, se pode ver lá na parte baixa do vilarejo os telhados avermelhados das construções seculares e um pouco mais em baixo ainda, o velho e simpático rio Tejo. Tomar o ônibus 360 para vir para cá, neste horário de terça-feira, é desfrutar de uma "viagem" antropológica, arqueológica, linguística e medieval inigualável. Sem essa experiência de meia hora é quase impossível saber o que Camões estava querendo dizer em seu enigmático e chato Lusíadas. 
Mas vim para cá por engano, meu destino era o Cemitério dos Prazeres e não o da Ajuda. É lá que estão enterrados os senhores das letras, da música, dos negócios, em suma: os grandes malandros. 
Um casal de velhos vai literalmente se arrastando à minha frente. Param diante de alguns mausoléus, procuram reconhecer as fotos incrustadas neles,  resmungam alguma coisa, mudam de rumo, desaparecem e logo reaparecem. Ela, com a tremedeira típica do Parkinson o conduz pelo braço. Ele, com o olhar zen do Alzheimer parece caminhar sobre as nuvens... Não precisa nem ser corretor de imóveis para saber que devem estar querendo comprar um terreno!
Perguntei ao coveiro se poderia me indicar onde estavam localizadas as tumbas de personalidades ilustres? Aqui, meu senhor - me disse ele - todos são ilustres! E agregou com a ironia típica dos lusitanos: ilustres mortos!... E quando eu já estava quase preparando-me para cair fora daquele condomínio de horrores, um outro coveiro, com uma picareta e uma pá aos ombros, aproximou-se e me fez esta observação: "Você, que é brasileiro, olhe bem para tudo isto aí, aqui entre nós até os sepulcros são construídos para a eternidade..." Caralho!!! 
Fazia um pouco de frio. Havia flores para todos os lados. O motorista do ônibus 760 fez-me sinal que ia partir...

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