quarta-feira, 29 de junho de 2011

BREVIÁRIO DE ERRÂNCIA (Filosofando com a borduna de Caim) II

...Estamos definitivamente numa estação de pau-a-pique onde as noites chegam sinistras, repletas de profecias e de relâmpagos, de lampiões moribundos prestes ao desaparecimento. Matilhas de famintos, a filharada de Caim, espectros e vultos fedorentos que se esgueiram sisudos sob as árvores e junto às muralhas murmurando obsessivamente as duas últimas linhas do badalado verso de Baudelaire em favor de nosso errante diabólico: “Race de Cain, ao ciel monte et sur la terre jette dieu!”[1] Mas, como todo verso é vão e toda poesia é narcisismo condensado e inútil, fica tudo por isso mesmo e tudo como está.[2]

Cheiro de querosene, piolhos e pele descamada. Trazendo um Caim, um Drácula e um Frankenstein sepultados dentro de si a escória vem marchando da escravidão do latifúndio para as vilas e para as cidades em busca de restos de comida, de uma bala perdida ou de um Serial Killer. Gira em espiral ao redor de si mesma, dos muros citadinos e pelas cercanias das majestosas catedrais e de seus campanários farejando um esconderijo onde cuspir, vomitar e cagar sua exclusão, sua lepra, sua esquistossomose e principalmente sua feiura que nada neste mundo dissipará. Tudo infinitamente mais grave do que a velha e sectária ideia de luta de classes. Descobre as marquises e os fundos de terrenos baldios e se resigna sob o estigma da escória cainesca, da maldição metafísica transmutada em maldição social. Com a tatuagem de uma víbora na garganta é a autêntica obra divina arrastando as tripas de lá para cá enquanto, com olhar súplice, rumina sua culpa e soleniza sua longevidade. Réplica e clone de tudo o que é abominável, de tanta miséria, penúria e escassez, não tem competência nem forças para, como sugere Baudelaire, pelo menos subir aos céus e enxotar de lá o Criador. A cada anoitecer se amontoa como pode a espera de que alguém da janela vizinha lhe aponte uma espingarda ou que alguma estrela vagabunda despenque sobre seu crânio e coloque um fim ao seu flagelo e ao seu único crime, o de haver resistido os nove meses uterinos e o de haver nascido.

Mantendo a distancia conveniente, observo o traste leproso que com seus olhinhos esverdeados de coruja descansa numa escada do jardim e apodrece – como diz Derrida – entregue à voracidade roedora, ruminante e silenciosa do animal-máquina com a sua lógica implacável.[3] De tempos em tempos beija uma cruz que leva amarrada ao pulso e resmunga uma oração breve, de apenas uma ou duas frases. De onde advém essa paixão humana pela ficção? Pobre diabo, não teve ainda a capacidade de compreender que um deus que coloca uma lepra no corpo de um crente – parafraseando a Bret Harte – certamente não se comoverá com suas suplicas e com suas orações. A barba, os cabelos, as sobrancelhas e os pelos que emergem de suas narinas e de seus ouvidos parecem ter a função de ocultar um teorema ou a tal marca de Caim que está em todas as partes desse corpo condenado, como um sifão, à precariedade. Alguns racistas insinuam que o tal sinal que Deus colocou em Caim (OTH em hebraico) seria a cor preta.[4] Outros se referem à doenças como a lepra, a tuberculose, o estrabismo, o alcoolismo, a sífilis, o HIV. Também há quem acredite que a marca seja o gigantismo, o nanismo, a circuncisão ou mesmo a ausência de pelos pelo corpo.[5]


[1] Visitar Abel e Caim, em Flores do Mal.

[2] Dizem que nos raros e nauseabundos soirèes poéticos onde Rimbaud marcava presença, sempre que alguém acabava de recitar um poema saia de sua boca o mesmo resmungo: merde!

[3] J. Derrida, em O animal que logo sou, editora Unesp, p.73, SP, 2002.

[4] Modesto Brocos, pintor espanhol naturalizado brasileiro, interessado na questão negra, dedicou uma tela a essa temática. Intitulada A redenção de Caim, essa pintura mostra uma família negra, cuja avó, orgulhosa de seu neto pardo, ergue as mãos para o céu em agradecimento e em gratidão. Nesse trabalho, Brocos trata da teoria vigente na época que previa o desaparecimento da raça negra através da miscigenação. Ver livro de João Carlos Rodrigues: O negro e o cinema. Ed. Pallas, RJ, 2001.

[5] Como os ameríndios, normalmente, não têm pelos e nem barba, alguns fanáticos chegaram a nomear a América Central como o Reino de Caim.


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