quinta-feira, 15 de abril de 2010

O EX-TATUTO DO HOMEM: UMA RESIGNIFICAÇÃO CONTEMPORÂNEA DO POEMA DE THIAGO DE MELLO

Artigo primeiro – Fica decretado que agora já não tem mais sentido falar em liberdade. Agora só vale a vida, mas uma vida que possa estar a altura do incurável, onde, de mãos dadas, encurralados pela ilusão de nossas necessidades marcharemos todos para o esquecimento...

Artigo segundo – Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais luxuriosas e ensolaradas, não têm direito de converterem-se nas manhãs beatas e tediosas de domingo...

Artigo terceiro – Fica decretado que a partir deste instante não haverá mais girassóis em nenhuma janela e que as janelas devem permanecer o dia inteiro abertas para o verde devastado onde, além dos troncos carbonizados e dos restos do fogaréu não há nenhuma chispa de esperança...

Artigo quarto – Fica decretado que o homem precisará cada vez mais duvidar do homem. Que o homem não confiará no homem como a palmeira não confia no vento, como o vento não confia no ar, como o ar não confia no negro e tenebroso céu...

Artigo quinto – Fica decretado que os homens, com sua caridade hipócrita, jamais estarão livres do jugo da mentira, nunca mais poderão livrar-se da couraça do pensamento e nem da armadura das palavras. Que o homem jamais conseguirá sentar-se à mesa com o olhar limpo, porque na hipótese de alguma verdade ser-lhe servida antes da sobremesa, morreria intoxicado...

Artigo sexto – Fica estabelecida durante dez séculos a inverdade onírica do profeta Isaias, porque só mesmo nas lendas bíblicas o lobo e o cordeiro poderiam pastar juntos e porque a comida de ambos ou de qualquer outro animal jamais conhecerá o gosto da aurora...

Artigo sétimo – Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da injustiça e da obscuridade e a frustração será uma bandeira tenebrosa para sempre instalada no cérebro do povo...

Artigo oitavo – Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder vingar-se de quem se odeia e saber que é o oxigênio e o hidrogênio e não a água que dão à planta o colorido da flor...

Artigo nono – Fica proibido admitir que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor e da sua ternura. Já que - todos estamos de acordo – não há nada de mais plebeu e de mais esotérico de que um sentimento...

Artigo décimo – Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, o uso de traje preto ou, se quiser, de livrar-se de qualquer roupa ou de qualquer vestimenta...

Artigo décimo primeiro – Fica decretado por definição, que o homem é um animal metafisicamente estrangeiro que não ama e que – independentemente disso – não tem a mínima chance de vir a ser radiante como a estrela da manhã...

Artigo décimo segundo – Decreta-se que mais coisas serão obrigatórias e mais serão proibidas, que só o rasteiro, o superficial e o tolo será permitido, inclusive brincar com rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela...

Parágrafo único – Uma coisa que não será proibida: seguir mistificando e idealizando o amor...

Artigo décimo terceiro – Fica decretado que só o dinheiro poderá, a partir de agora, comprar o sol das manhãs vindouras. Liberto do tabu, da falsa modéstia e do fetichismo, o dinheiro seguirá sendo a espada fraternal para garantir a quem o possua, diversificar as misérias de seu cotidiano...

Artigo final – Fica obsoleto o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano vertiginoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo em putrefação e fétido como um fogo de crematório ou um rio poluído. Sua morada será sempre subterrânea e mítica e jamais o coração do homem...

3 comentários:

  1. Salve! Nada mexe mais comigo do que uma manifestação genial - perceptiva e inteligente sobre a fatalidade da existência - como as que lhe são próprias Ézio!
    Há de haver um link permanente para esse EX-TATUTO visto que todos os artigos são retratos essenciais e só uma leitura diária permitirá a transgressão necessária para se viver uma fantasia qualquer de liberdade sem a qual - confessemos - nada seria suportável.

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