sábado, 24 de outubro de 2009

Mendigos: Párias ou heróis da cultura? II. (Reedição de livro, p. 45)

Estamos definitivamente numa estação de pau-a-pique em que as noites chegam sinistras, repletas de profecias e de relâmpagos, de lampiões moribundos prestes ao desaparecimento. Matilhas de famintos, a filharada de Caim, espectros e vultos fedorentos que se esgueiram sisudos sob as àrvores e junto às muralhas murmurando obsessivamente as duas últimas linhas do badalado verso de Baudelaire em favor de nosso errante diabólico:

“Race de Cain, ao ciel monte et sur la terre jette dieu!”[1]

Mas como todo verso é vão e toda poesia é narcisismo condensado e inútil, fica tudo por isso mesmo e tudo como está.[2]

Cheiro de querozene, piolhos e pele descamada. Trazendo um Caim, um Drácula e um Frankenstein sepultados dentro de si a escória vem marchando da escravidão do latifundio para as vilas e para as cidades em busca de restos de comida, de uma bala perdida ou de um Serial Killer. Gira em aspiral ao redor de si mesma, dos muros citadinos e pelas cercanias das magestosas catedrais e de seus campanários farejando um esconderijo onde cuspir, vomitar e cagar sua exclusão, sua lepra, sua esquistossomose e principalmente sua feiúra que nada neste mundo dissipará. Tudo infinitamente mais grave do que a velha e sectária idéia de luta de classes. Descobre as marquises e os fundos de terrenos baldios e se resigna sob o estigma da escória cainesca, da maldição metafísica transmutada em maldição social. Com a tatuagem de uma víbora na garganta é a autêntica obra divina arrastando as tripas de lá para cá enquanto, com olhar súplice, roe sua culpa e soleniza sua longevidade. Réplica e clone de tudo o que é abominável, de tanta miséria, penúria e escassez, não tem competência nem forças para, como sugere Baudelaire, pelo menos subir aos céus e enxotar de lá o Criador. A cada anoitecer se amontoa como pode a espera de que alguém da janela vizinha lhe aponte uma espingarda ou que alguma estrela vagabunda despenque sobre seu crânio e coloque um fim ao seu flagelo e ao seu único crime, o de haver resistido aos nove meses uterinos e o de haver nascido.

Mantendo a distancia conveniente, observo o traste que com seus olhinhos esverdeados de coruja descansa numa escada do jardim e apodrece – como diz Derrida – entregue à voracidade roedora, ruminante e silenciosa do animal-máquina com a sua lógica implacável.[3] De tempos em tempos beija uma cruz que leva amarrada ao pulso e resmunga uma oração breve, de apenas uma ou duas frases. De onde advém essa paixão humana pela ficção? Pobre diabo, não teve ainda a capacidade de compreender que um deus que coloca uma doença no corpo de um crente – parafraseando a Bret Harte – certamente não se comoverá com suplicas e com orações. A barba, os cabelos, as sobrancelhas e os pêlos que emergem de suas narinas e de seus ouvidos parecem ter a função de ocultar um teorema ou a tal “marca de Caim” que está em todas as partes desse corpo condenado, como um sifão, à precariedade.

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[1] Ver Abel e Caim, em Flores do Mal.
[2] Dizem que nos raros e nauseabundos soirèes poéticos onde Rimbaud marcava presença, sempre que alguém acabava de recitar um poema saia de sua boca o mesmo resmundo: merde!
[3] J.Derrida em O animal que logo sou, editora Unesp, p.73, SP, 2002.

Um comentário:

  1. Ei Ézio! Produza uma edição KINDLE do livro, se precisar eu te ajudo! A gente quer ler, comprar mas - eu pelo menos - tô cansado de arranjar mais espaço pra livros e carregar bibliotecas por aí a cada mudança... Vamos lá???

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