sábado, 11 de abril de 2009

Histórias e estórias de paixão


Nesta “Sexta-Feira Santa” cruzei as montanhas goianas ainda de madrugada, com a neblina ocultando os barrancos e as pastagens para vir até aqui na cidade de Trindade ver o teatro da chamada Paixão de Cristo. Não, não pensem que descambei para a demência da fé, trata-se apenas de um interesse sócio antropológico.

Nem se compara ao ritual de Planaltina e muito menos ao de Pernambuco. Aqui tudo é de uma singeleza quase palpável, e por isso mesmo, talvez, mais real. Quando cheguei a Vía Sacra – que acontece ao longo da Rodovia Goiânia/Trindade - já estava na Quarta Estação que, por ironia, fica quase em frente ao Motel Faraó. A Quinta Estação, uns quilômetros mais adiante, fica em frente a uma fábrica de cerveja e a Sétima Estação, onde Cristo foi pregado à cruz, bem na esquina do Vip Motel. Coincidências – talvez demoníacas - que tentaram misturar o profano e o sagrado do começo ao fim da encenação. O sujeito que fazia o papel de Cristo tinha uns olhos profundos e melancólicos como se realmente tivesse sido vendido por uma bagatela e o pior, por um de seus mais queridos comparsas. Quando passou ao meu lado deu-me uma olhada como se eu fosse a reencarnação de um dos lacáios de Pilatos.

O que a mim chamava mais atenção naquele teatro metafísico era a convicção da turba que ia atrás do Cristo gritando: Morte! Morte! Queremos sua morte! Queremos sua morte! Uns pareciam realmente transtornados, sedentos por sangue e dispostos a matar alguém, outros, haviam tomado uns tragos e estavam apenas fazendo pândega, enquanto os que haviam sido contratados seguiam o script com mais sobriedade. O efeito de seus gritos, da música e da voz de um coroínha juntos sobre a platéia que se amontoava curiosa e sádica pelos barrancos da rodovia era visível. Os mais velhos, claro, choravam. Pareciam sentir os chicotaços que os sujeitos fantasiados de soldados romanos desferiam nas costas do nazareno. Os mais jovens, ficavam circunspectos. Apenas as bailarinas que se insinuavam executando a dança do ventre sobre um tablado pareciam imunes àquele clima emotivo. Aliás, esta foi a primeira vez que vi colocarem bailarinas e cortesãs com pouca roupa em cena no roteiro do calvário. Enquanto as fotografava veio-me à memória um texto de Lenin sobre a emancipação feminina onde ele afirmava categoricamente que a revolução não tolera estados orgiásticos.

Quanto aos dois ladrões que já estavam há mais tempo amarrados e ensanguentados em suas cruzes, ninguém parecia dar-lhes muita importância, afinal, quem é que não tinha um irmão, um pai, um tio ou simplesmente um conhecido no presídio de Goiânia ou mesmo em casa, já que neste dia muitos presos haviam se beneficiado com o indulto de Páscoa? Quando pulei o cordão de isolamento para fotografar os ladrões mais de perto, um adolescente meio alcoolizado aproximou-se para dizer-me: o nome do da direita é Renan e o da esquerda é Jader. Enquanto vou me acotovelando no meio da turba, travestido ora de fotógrafo ora de padre e enquadrando os mais fanáticos e mais exóticos em minha câmera vou pensando na tese de Lucy Brown, exatamente sobre a paixão, publicado no Journal of Neurophysiology: “Estado emocional geralmente marcado por uma dose generosa de irracionalidade e desejos incontroláveis, a paixão exibe um perfil neuronal semelhante ao de situações como sentir fome, ter sede ou ser viciado em algo, como jogar ou usar alguma droga. Isso ocorre numa área do cérebro dos mamíferos que toma conta das funções mais básicas e inconscientes, como comer, beber, movimentar os olhos".

Me distraí por uns momentos e quando percebi o Cristo já estava lá no alto da cruz travando um diálogo com a soldadesca. Depois lhe enfiaram uma lança no lado esquerdo do peito por onde escorreu um líquido cor de vinho que algum herege da multidão apressou-se em gritar que era mercurio cromo. Em seguida lhe passaram uma esponja molhada nos lábios, momento em que lançou uma crítica violenta e colérica contra seu Pai, por tê-lo abandonado à fúria da turba asquerosa, e morreu.

O cenário encheu-se de fumaça e de raios. Ouvi os soluços de uma senhora que levava uma sombrinha preta. Os soldados e os demais comediantes se colocam de joelhos, em silêncio, como se uma culpabilidade aterradora tivesse despencado sobre suas consciências.

Eram exatamente 13:30 horas. Um sol cancerígeno queimando as carnes daquela gente. Distraio-me novamente com a turba e quando volto a atenção para o cenário já estão baixando o corpo morto da cruz e entregando-o a uma mulher melancólica vestida de azul. Sua mãe ou Maria Madalena? No hotel consultarei o Google. Enquadrei o rosto doloroso daquela pobre mulher e a face ensanguentada daquele pobre homem. Aquela cena também todo mundo já estava careca de ver em seu cotidiano. Nesta guerra civil em que vivemos quem é que não tem um filho, um pai, um marido ou simplesmente um vizinho assassinado?

A imprensa falada, escrita e fotográfica se lança sobre a cena final como um bando de chacais… O padre agradece a presença de todos, mas principalmente aos colaboradores, aos patrocinadores, aos politicos influentes e aos beatos incansáveis que, durante séculos, não desistem de encenar, de graça e por pura desesperança, essa estória de luxúria e de horror.


Ezio Flavio Bazzo

Um comentário:

  1. sim, produto do espetáculo da cultura dos abutres disfarçados de colibris: a paixão de cristo! a cristandade sobrevoando o deserto à procura de carne putrefata. desejo de abutres: saciar-se do que está morto e nauseabundo. eterno retorno da morte. nenhum frescor da vida. a repetição perversa de uma "boa nova" carniceira travestida da delicadeza do colibri que procura plantas coloridas.

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