quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Biografia


Vim ao mundo em 08-12-49 numa região montanhosa e repleta de pinheirais no interior de Santa Catarina, lugarejo que nem constava no mapa e onde o idioma falado, tanto em casa como nas ruas era o de Paganini. Meu bisavô Matteo havia abandonado a cidade de Fonzaso, quase na fronteira com a Alemanha e famosa pela produção de graspa, atravessado os mares e lançado âncoras no RS de onde seus descendentes foram migrando para SC e, mais tarde para o PR. Essa vila onde nasci e deve até ter desaparecido, era constituída por umas vinte ou trinta casas de madeira, com varandas e venezianas, exatamente como as de Veneza e pintadas sempre com cores exóticas. As imagens mais importantes que consigo resgatar, daqueles anos, são imagens do inverno. A geada nas vidraças. As chaminés fumegantes, o cheiro do pinhão e os gatos, soberbos, transitando por sobre as cercas em busca de um pedaço de sol. Uns quatro anos depois os caminhões e os gipes em caravana escalando as montanhas rumo ao Paraná... A selva ainda intacta, as perobas, as onças rondando os galinheiros, as espingardas sempre carregadas, um tio tocando violino, os festins a cada matança de porcos, as tripas transformadas em salames, o cheiro da xota de uma priminha, os colchões mijados expostos nos telhados e as peças íntimas das irmãs secando nos varais... Depois a escola, os sapatos, o rádio, o incenso das missas, a melancolia dos sinos, todo dia na hora da tal Ave Maria. A adolescência, as punhetas intermináveis, as brigas de rua, a culpa, os embates familiares, as crismas, os casamentos, os revólveres, os tiroteios nos finais de semana, as terras griladas, o Governo Lupião e as escrituras falsas, a desmistificação dos adultos, dos mandamentos, da moral vigente. Da Bíblia para a Enciclopédia, da punheta para os braços e para as coxas das pequenas camareiras. O ginásio, a marcha de Sete de Setembro. A colheita do café. A banda semimarcial. Mussolini. Hitler, as Valsas Vienenses. A dificuldade para falar português. O "rr" enterrado e tatuado na língua. Ser padre ou médico? E a Itália sendo soterrada e negada. Ser gringo era quase um crime. A marcha das mulheres indo à igreja com seus véus e seus intestinos presos. Num inesquecível entardecer a mala aos pés. Adio! Arivederci! Curitiba. Colégio Estadual. Colégio Iguaçu. Universidade de Lisboa. Brasil. Londrina. Universidade de La Plata. Londrina. Brasília. Universidade do México. Brasília. Universidade do México, Universidade de Barcelona, Brasília, Universidade de Paris, Brasília. A universidade como um pretexto, porque o saber estava sempre à margem ou ao lado. A rua. O caos. A contramão. As entrelinhas. O inferno desconstruído. A Índia, o Nepal, a China. A grande marcha de cada um. Pukhet um pouco antes da tsunami. A solidão dos aeroportos e das espeluncas. O texto. O caderno de notificações. O asco pela mesmice. O horror ao trabalho. À alienação. À mentira convencionada. À polícia estatal, à igreja, o superego intransigente e lá no meio das coxas das mulheres, sempre o mesmo cheiro alucinante de outrora. A palavra em movimento. Um mosteiro interior, uma cidade estupenda construída somente de pesadelos. As ruas de Praga... A boca tenebrosa do metrô. Um morto boiando no Volga. A morte. Os cemitérios de Paris, de Istambul, da Bolívia. Cada lápide como um espelho. Devagar por entre os monumentos vendo as botas espelhadas aqui e acolá. Um corvo. Apenas um corvo numa manhã de neve nos arredores de Tel-aviv. Uma rajada de metralhadora e o silêncio. Trinta e cinco, quarenta, cinqüenta e oito anos. O rio São Francisco, o Ganges, o Mississipi. Os cabelos grisalhos, um naufrágio nas costas de Petrolina. O sol, o carcará, as moscas lambendo meus dedos... O texto, o caderno de notificações. Vargas Vila revisitado. A máquina fotográfica. Um violino como o Guarnierus do Paganini ou como o do meu tio. Meus dedos loucos e esqueléticos atrás das notas para executar precariamente a doçura de summertime. A famiglia desfeita entre os mares. A psique. Dos gatos soberbos transitando sobre as cercas em busca de um pedaço de sol à psicanálise. Milhares de horas de escuta. Para quê? As dores do mundo escutadas e condensadas no dia-a-dia, ano-a-ano, década-a-década. Curar-se. Curar-se de quê fratelo mio? Eu, como muitos outros, talvez nem tenha verdadeiramente uma biografia - como dizia um antropólogo - poderia se falar, mais bem, numa longa e maldita ficha policial.

Ezio Flavio Bazzo