quinta-feira, 23 de junho de 2005

Assim Falou Vargas Vila


Foi num amontoado de livros desencapados e prestes a serem jogados no lixo que lá por 1968, focinhando numa loja de objetos usados, deparei-me, por primeira vez, com um exemplar do Rosal pensante, de autoria de um sujeito até então desconhecido e com um nome ridículo: José Maria de la Concepción Apolinar Vargas Vila Bonilla, nascido em 1860 na Colômbia e morto em 1933 em Barcelona. Só pensei em negociar o preço daquele verdadeiro restolho depois de ficar hipnotizado com a leitura destas duas linhas:

Curar-se de certas excentricidades, é fazer como os outros: cretinizar-se; a primeira condição de ser coletivo é ser abjeto.

Talvez hoje esta frase não tenha mais o efeito iconoclasta daquela época, quando tinha apenas dezenove anos, vivia no mundo da lua, confinado em casas estudantis, embriagado de idealismos, sem a mínima idéia de que o homem era um «animal méchant par excellence», e quando as veraneios chapas-frias do DOPS e do exército, em seu teatro ditatorial e burlesco subiam e desciam em alta velocidade, vinte e quatro horas por dia pelas ruas e becos gelados de Curitiba. O livro, além de ser um viveiro de traças, também fedia. De cócoras, fascinado, li e reli um segundo parágrafo:

"O escritor que fala por diminutivos, é porque pensa diminutamente; os heróis de Homero, não combatiam com alfinetes; quando leio versos cheios de «cabecinhas loiras», «virgenzinhas queridas», «manecitas liliales», penso instintivamente, em todos esses rimadores, com almas de costureiras sentimentais, que infestam nosso Parnaso..."

Foi meu primeiro e definitivo encontro com Vargas Vila, esse blasfemo furacão do verbo que não se assemelhava em nada aos da zoologia literária da época. Foi minha primeira leitura desse contemporâneo de Ruben Dario, autor de umas dezoito mil páginas, entre as quais as do famoso Íbis, texto que por ter levado diversas pessoas a se matarem ficou conhecido como a Bíblia do Suicídio.

Sem falar dos anarquistas e dos desvairados mexicanos que de 1979 a 1981 invadiam meu pequeno apartamento da calle Copilco a qualquer hora do dia e da noite para discutir os textos de Vargas Vila e nem da prostituta goiana que mantinha permanentemente sobre o criado mudo, ao lado de uma oração de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, um exemplar de seu Lírio Negro, foi o Jorge, do Armazém do livro usado de Taguatinga quem, em 1997, ligou para comunicar-me que havia comprado a obra vargasviliana completa da viúva de um dentista de Anápolis. Fechamos negócio por telefone. Nos dias seguintes, sob os estrondos da tempestade que caiu sobre a cidade, folhear um por um daqueles volumes publicados pela Sopena de Barcelona, e ainda por cima, rabiscados pelo dentista recém morto, foi uma viagem quase kardecista e quase nirvânica.

Estava lá, tudo lá o pouco que já sabia e tudo o que estava por saber da obra desse novelista militante, panfletário, jornalista, niilista, ateu, anticlerical e obsessivamente indignado com a palhaçada fastidiosa reinante na América Latina, principalmente com o carneirismo vergonhoso de sua política e de suas assembléias. Exageradamente ético, erótico e libertário, (apesar de ter vivido uma relação simbiótica e doentia com a mãe), V.V. odiava a velharia supersticiosa e os caudilhos criminosos que se sucediam por todos os países do continente, da mesma maneira que detestava a dominação imperialista dos yankees, contra quem escreveu Ante los bárbaros. Banido de sua terra natal viveu na Venezuela e em NY onde, em 1892, trabalhou como redator do jornal anticlerical Progresso e fundou as revistas Hispano-América e Némesis. Com sua mudança definitiva para a Europa, incluiu em sua agenda libertária a luta contra as conhecidas máfias intelectualistas, contra os fabricantes de filosofias para entregadores de pizza e contra os conhecidos PHDéspotas que só se valiam da escrita para ruminar e puxar o saco de quem estava no poder.

Apesar de toda sua erudição, Vargas Vila foi também um escritor popular, lido compulsivamente pelos marinheiros, pelos artesãos, pelos presidiários e marginais de todos os calibres. Contemporâneo de Freud, admirador de Ibsen, amigo de Pompeyo Gener e leitor de Stirner, deve ter navegado exaustivamente tanto pela psicanálise como pelo anarquismo individualista e ter arrancado daí não apenas o sentimento negativo com o qual construiu seu niilismo, mas também a sacação subterrânea do Ser, através da qual deu realidade e vigor tanto à sua filosofia como à sua análise dos homens, do mundo e da política latino americana, dessa parte quase maldita do continente, com seus sucessivos ladinos e empedernidos governantes de turno.

Com seus livros, sua vida e seu discurso radical, não apenas contra a ignorância e a bestialização social, mas também contra o absurdo da existência e contra todas as hipóteses divinas (Deus não me expulsou do céu, eu sim expulsei Deus de meus céus interiores. Nisso fui maior que Satã), era previsível que fosse abrir frentes de indignação, de ódio e de inimizades por todos os lados, mas, principalmente, entre os apóstolos da demagogia. Se nunca se rendeu a elas, foi porque era doentiamente convicto de que

"a verdadeira eloqüência deve produzir sobre os povos o efeito do furacão sobre as ondas, o efeito das chamas sobre o feno seco, da chispa sobre a pólvora, isto é, deve produzir a tormenta, o incêndio, a explosão e a tragédia irremediável".

E mais:

"Que aquele que põe fé nos outros, perde a única fé que salva: a fé em si mesmo".

Na Espanha de Franco seus livros foram marcados com o ponto vermelho da censura e na Colômbia a igreja ameaçava excomungar quem lesse suas novelas. Seus textos e fotos chegaram a ser queimadas em praça pública. "Em suas obras não é apenas o erotismo sensualista do naturalismo o que se respira, -dizia o padre Jesús M Ruano- ali se faz apoteose do pecado, a incitação aos crimes mais repugnantes. Ali brota como emanação pútrida o ódio sistemático à pureza dos costumes, à dignidade, à generosidade e à racionalidade do homem". Além dos padres e dos déspotas políticos, também os escritores que sempre florescem em abundância nos quartinhos de fundo dos palácios, das paróquias, da imprensa oficial e dos antros diplomáticos não se cansavam de tentar desqualificá-lo.

Não escrevo para deleitar, escrevo para combater, contestava–lhes Vargas Vila, em Prosas-laudes.

Em 1952, dezenove anos após sua morte, o crítico José J. Guerra afirmava em um artigo que em todos os livros de Vargas Vila "desde a primeira até a última página só se encontrava gritos satânicos de rebelião e de insultos contra tudo o que existe de mais nobre e mais sagrado para o homem".Até o velho Borges, o ilustre, cego e erudito diretor da Biblioteca Nacional Argentina, na única vez que fez referência a Vargas Vila, em Historia de la Eternidad, publicada no ano da morte de Vargas Vila (1933), no capítulo intitulado Arte de injuriar, referindo-se a uma crítica deste a Santos Chocano, tentou eclipsá-lo.

E é exatamente por isso, por Vargas Vila ter sido proibido por Franco, excomungado pela igreja colombiana e por ter causado tanta indignação entre a canalha detratora que o estamos revisitando e republicando.

Ressuscitá-lo no Brasil, principalmente em Brasília, nesta cidadela de caixotes, de burocratas errantes, de botecos, de novos ricos delirantes, de filhinhos e netinhos de agentes da ordem, de escritorzinhos engravatados e de shoping centers, neste momento histórico e político broxante, com a América Latina ainda mergulhada em seus esgotos e ainda de joelhos diante da mesma quadrilha de sua época, é quase um dever de quem pensa e de quem tem desprezo pela pobreza mental generalizada do cotidiano. É quase uma obrigação de quem tem horror a esses magotes ainda não nascidos plenamente que além da televisão e das feijoadas só conseguem dialogar sobre os ângulos e os pregos da cruz. Dever de quem se sente asfixiado no meio de toda essa ignorância instituída, desse atraso social incurável onde todos os projetos pretensamente revolucionários foram para a merda, e onde a vida se resume em falar mal dos outros, em ir às soirées, ter um emprego, uma casa, uma falsificação de Picasso, um carro e o certificado de filiação a uma das tantas e nefastas agremiações idólatras, idealistas e teológicas que, apesar do poder difamatório que dispõem, não são mais do que prostíbulos de infâmia.

Sim, é oportuno reeditá-lo neste momento, quando os capuchinhos da crítica literária nacional não conseguem fazer outra coisa além de bajular os vivaldinos do momento ou de reincensar Guimarães Rosa, Machado de Assis, Graciliano e outros vaselinas. Ah, será um gozo imenso fazer Vargas Vila circular pela cidade e por sua periferia onde a ralé desiludida se despedaça todos os dias a tiros, facadas e pauladas depois de ouvir os pastores, os padres e os gurus mentindo descaradamente nos palanques, nas dioceses ou nos programas de televisão! Acreditem: será um gozo imenso trazê-lo para o cenário, principalmente hoje, quando os mercenários, as matronas e os religiosos ocupam praticamente 90% das cadeiras no Parlamento. Quando os banqueiros, os donos de terras, os políticos, os representantes da imprensa, dos sindicatos, das igrejas e das indústrias (todo esse espectro vil das antigas monarquias) estão cada vez mais íntimos e próximos uns dos outros e quando são vistos juntos, enchendo a cara nos mesmos banquetes e fazendo pouco caso das desgraças que se abatem sobre cinqüenta ou sessenta milhões de pessoas. Quando são vistos abraçados tramando publicidades enganosas, ludibriando aos adolescentes com esportismos e porcarias tecnológicas, aos velhos com uma compaixão burocrática e com medicamentos falsificados e, às mulheres, com o modismo homomaníaco, obsessivo e burro de sempre.

Será mais do que oportuno republicar Vargas Vila agora, em português (esse idioma de pescadores), quando os estelionatários de todas as classes estão afinados e irmanados nos assuntos do agiotismo internacional, usando os mesmos ternos, as mesmas cuecas, as mesmas máscaras, as mesmas loções e a mesma linguagem. Quando a bandidagem republicana está silenciosamente rateando os fundos do Tesouro Nacional, devastando as matas nativas para plantar soja, loteando e explorando comercialmente os míseros prazeres e as míseras possibilidades de lazer acessíveis a uma multidão moribunda e deprimida que, por sua vez, não sabe fazer outra coisa além de competir, perseguir e infernizar-se mutuamente a vida, seja no confinamento doméstico ou nas arquibancadas desse prodigioso e olímpico circo. (y, ellos, se embriagan con el humo de la adulación, que la prosa mística de los conservadores, y la retórica plebeya de los jacobinos, les administran a alta dosis, y se creen eternos…). Delírio e desatino que realmente ninguém sabe quando terá fim, uma vez que os setores ditos cultos da atualidade –da literatura ao cinema, da tecnologia ao turismo e à sociologia etc, etc-, conspiram descaradamente para o engrandecimento da putaria política e para o aprofundamento da idiotia coletiva.

Por fim, este resgate da obra de Vargas Vila representa a realização máxima de minha vida de leitor. Considero esta releitura e esta publicação de seus textos como a mais importante de minhas contribuições na tarefa insólita de diagnóstico e de desmascaramento dessa opereta fajuta e desse music-hall pseudo-civilizatório em que nos atordoamos. Desse picadeiro patético onde até a pequenez própria –parafraseando Otto Fenichel- pode ser motivo de gozo quando serve para dar ao idiota a ilusão de que participa da grandeza do outro. Além de um maremoto nas consciências dos leitores, desejo que este livro também estremeça as estruturas frígidas e canônicas do palavrório irracional vigente e da língua.

Ezio Flavio Bazzo
Num café da Mouraria (Lisboa)