domingo, 23 de janeiro de 1994

A genealogia da privada


Quem é que por mais puritano e asséptico que seja, não tem uma relação estreita e íntima, todos os dias, com aquilo que os ingleses conhecem por turd; os italianos, por stronzo; os alemães, por dreck; os célticos, por stronc; os franceses, por merde; os espanhóis, por mierda; e os portugueses, juntamente com os brasileiros, por merda ou por bosta?


A idéia desta «obra» é fazer um pouco de história das toilettes e um pouco de toilette da história. Isto é, de cruzar os caminhos que a humanidade percorreu para consolidar os conceitos e os pré-conceitos que tem hoje, e que talvez tenha tido sempre, dessa massa parda e fumegante, dessa "coisa" que, mesmo sendo valiosa como adubo e amada pelos coprófagos, esteticamente não agrada e, pelo contrário, tem provocado depressões e tristezas incuráveis.

Poderia tê-la intitulado de maneira mais "simples": "O cotidiano e a merda", por exemplo. "As acrobacias intestinais dos terrestres"; "rituais e segredos da privada", ou mesmo "A lírica do estrume". Mas não. Quis propositadamente dar a im­pressão de ser um esnobe, um excêntrico, e de estar fazendo um ensaio acadêmico, embora até um cego perceba, de cara, que não estou. E não estou porque não teria fôlego para passar tanto tempo sob a mira dos carcereiros da Sorbone, e muito menos sob a prepotência dos sábios de Francfort. Uma parte de meu sujeito, como se verá mais adiante, é a guilhotina, mas o núcleo central de todo raciocínio será a Merda, e não apenas aqueles que a produzem. Apesar de que, evidentemente, gostaria de dedicar uma tese só a intimidade escatológica de Napoleão e de divulgar uma ou duas de suas fotos em seu Waterloo. Faria o mesmo, e mais prazeirosamente ainda, com Marie Antoinette, sentada sobre sua luxuosa pri­vada monárquica e com outros "sofomaníacos" menos ilustres, com suas empáfias sórdidas.

Além da guilhotina, dessa máquina de cortar cabeças, que funcionou aqui na França até meados de 1981, estas páginas tratam objetiva e subjetiva­mente, do esterco, dos resíduos e da merda, exatamente como ela existe in-natura dentro das tripas dos homens, das mulheres e das crianças. Também tratam de sua presença na retaguarda dos séculos, no esquecimento som­brio e lúgubre dos milênios, no ontem e no hoje, assim como da negação social de sua existência e das estratégias psicológicas e arquitetôni­cas dos homens (mas muito mais das mulheres) para ignorá-la, para torná-la ignota, e fazê-la de­saparecer tanto da consciência como da latrina, com a simples pressão no botão da descarga. Tratam do jogo quase maníaco montado pelos homens para fazer de conta que tudo o que in­gerem é absorvido na íntegra, transformado em energia vital, em neurônios, músculos e potência. Mas não é. Todo mundo sabe que não é. Que existem os resíduos e o bagaço até dos melhores e mais sofistica­dos ali­mentos, dos mais caros menus que se pode saborear nos luxuosos restaurantes de Montmartre ou de Champs Élysée. E é a deposição e a excreção desses resí­duos, no silêncio e na solidão das pri­vadas, duas vezes por dia, durante toda a vida que fragiliza a vaidade humana, que provoca um tipo de psiquialgia e que torna a existência um enigma ainda mais assustador.

Mas para entender que tudo já foi muito pior, basta lembrar que a invenção das toilettes, das privadas, do papel higiênico etc, aconteceu prati­camente ontem, e que, evidentemente, significou uma revolução e um verdadeiro avanço no cotidiano íntimo da humanidade. Pois houve tempos, todos sa­bemos, depois que os homens cairam no sedenta­rismo, em que esse bagaço era excretado em qualquer lugar. Ao lado do catre, junto às panelas, so­bre palhas, sobre folhas de bananeira. Houve tempos -repito-, em que se cagava nas próprias mãos, e então a merda era jogada a ermo, para ser comida por algum animal "inferior", e para que seu odor putrescente não incomodasse àquele ou àquela que o havia produzido . Os urinóis de madeira, alumínio ou de louça, também vieram atropelar essa realidade e facilitar a aventura do isolamento, e adquiriram tanta importân­cia, que Lênin, o «deus» Lênin, em um de seus discursos aos bolcheviques, ga­rantiu que o socialismo iria possibilitar ao povo ter até mesmo urinóis de ouro. Hoje, por incrível que pareça, o povo cuspiu sobre seu esqueleto e na URSS, os bolche­viques, por pouco, não voltaram a cagar nas escadarias do Kremlin.

Quem for ao Museu Carnavalet, no Marais, pode ver lá, entre o mobi­liá­rio de personalidades ilustres francesas, al­gumas amostras desses reservatórios e desses recipientes fecais, desses "capacetes" que amanheciam trans­bordando e cujo conteúdo, na Paris de 1800 (como no Nepal de hoje), era arremessado vigorosamente pelas janelas. Em todos os extremos da terra, historicamente a merda aparece como um símbolo: "símbolo como o milho, o sexo, o fogo, o ouro, a chuva, o sol, a casa, a esteira e o bastão plantador. Como o punho fechado que pode gritar ameaças, vontade de esperança ou saudação fraterna" (Austin, p. 85). A idéia de pintar dois olhos no fundo dos primeiros penicos «pots de chambre», não teve nada a ver com os dois olhos de Buda pintados na cobertura dos templos em Kathmandu, mas sim com uma ironia popular contra o Ministro e cardeal francês, Mazarin, que tinha fama de es­pionar tudo o que se passava na Corte.

Vasos de louça; papel higiênico; óleo de Rícino; Constipação, yoga para prisão de ventre; hemorrói­das; serin­gas para "clystère", cólicas. Trinta dias de expectativas e três de caganeira. Supositórios, odores, o milagre do Aloés, da Hydroterapia, do suco de ameixas. As letras, a filosofia, a polí­tica e a impossibilidade de soltar a merda.

Camisa de Vênus, folhetins ensinando como "ir aos pés", o cheiro da merda e a ereção. Toilettes públicas como lugares de rendez-vous; mural de lunáticos e de pensadores tímidos. Velhinhas limpando o mijo nos ladrilhos e os resíduos escuros que se grudam nas laterais do móvel. Voltaire, o sábio que passava dias sem cagar. Os grafitos; a inspiração impávida, solitária, revolucionária e niilista… O vaso como suposto transmissor da sífilis, da gonorréia e da AIDS e até mesmo da gravidez. Mas tudo é fruto de um imaginário domes­ticado pela vergonha, pelo preconceito e pelo medo, como o demonstram as privadas das escolas primárias, com suas portas que deixam aparecer a cabeça e os pés, para assim as matronas poderem vigiar seus pequenos usuários.

Lugares apropriados para mulheres e para deficientes físicos, lixeiras específicas para modess; alta rotati­vidade diante dos espelhos com molduras de Imbuia. Baton e sangue na tampa branca dos tronos; técnicas modernas para lembrar o usuário de puxar a descarga, de economizar papel, de lavar as mãos antes e depois de baixar as calças ou de erguer a saia, e, sobretudo, para fazer dessa obrigação um Honoris Causa.

Vemos que a privada, a merda e o cu entram em alta no momento em que o mundo submerge na modernidade e que mesmo sem fazer grandes dis­cursos a respeito, a indústria, a arquitetura e a sociedade como um todo dedica tempo, espaço e dinheiro para a fabricação de novos instrumentos e de novos confortos "higienistas". Todos, sem exceção, têm certeza e fé, de que um dia, a medicina, a cibernética, a religião ou a psicanálise libertará o homem dessa necessidade "animalesca" e selvagem, mesmo quando a última, em algumas circunstâncias, gosta de visualizar uma es­pécie de equivalência simbólica entre a merda e o dinheiro. (A prisão-de-ventre seria uma resultante da avareza. Mas e a diarréia?).

Mesmo assim, hoje em dia, seja em Londres, em Kathmandu, em Bangkok, em Brasília ou em qualquer outra dessas cidades que abrigam populações numerosas, é difícil dispôr, com urgência, de uma toilette. As de Brasília, estão ininterrup­tamente fechadas para reforma, já em Paris, as que existem em plena rua, além de inóspitas, se parecerem a discos voadores, são caras e difíceis de abrir. Já vi vários estrangeiros ou "senhores de idade" tentando entrar nelas mas acabando por fazer a descarga nas calças. Existe, claro, as dos cafés, mas que normalmente são só para clientes e cujas portas só abrem se enfiarmos nelas uma moeda de um Franco. Além dessas, quem mora em Paris sabe que pode contar com as dos restauran­tes universitários, onde nunca há papel e onde sempre existem enormes "porções" boiando. Tenho um amigo que faz questão de ir mijar todos os dias lá na toilette da Sorbone. Ele a acha limpa e, ainda por cima, pode mijar quase sempre ao som dos sinos e da voz reprimida e iníqua dos professores.

Claro que com este livro não quis engendrar uma Art-Poétique e nem esculpir uma Ode à merda . Não quis compor um Canto ao mat­rial fecal , e muito menos um panegirico à coprofagia. Mas apenas tratar "desinibidamente" (se possível), dessa matéria e especular sobre algumas variáveis do tão problemático ofício de defecar. Não quis colocar-me a favor da Princesa Palatine, (com seu horror à merda), nem do lado de sua tia L'Electrice,(com seu elogio do Ato). É de conhecimento de todos escatólogos a carta que Charlotte, filha de Charles Louis, nas­cida em 1652, escreveu a sua tia, L'Électrice, colocando no pa­pel, em forma de desabafo, toda sua indignação com a necessidade compulsória de cagar. A tia, por sua vez, mais realista, tentou consolá-la com um sermão e uma resignação quase religiosa, fazendo uma verdadeira elegia a essa «bestialidade». Eis aqui, em francês, alguns fragmentos dessas cartas:"

Ah maudit chier!

Je ne sache pas de plus vilaine chose que de chier!

Voyez passer une jolie personne, bien mignonne, bien propre, vous vous récriés: Ah, que cela serait joli si cela ne chiait pas. Je le pardonne à des crocheteurs, à des soldats aux gardes, à des porteurs de chaises et à des gens de ce calibre-là. Mais les empereurs chient, les impératri­ces chient, les rois chient, les reines chient, le pape chie, les cardi­naux chient, les princes chient, les archevêques et les évêques chient, les gé­né­raux d'ordre chient, les curés et les vicaires chient. On chie en l'air, on chie sur la terre, on chie dans la mer, tout l'univers est rempli de chieurs, et les rues de Fontainebleau de merde, prin­cipalement de la merde de Suisse, car ils font des étrons...gros comme vous, madame.. Si vous croyez baiser une jolie petite bouche avec des dents bien blan­ches, vous baisez un moulin à merde. Tous les mets les plus délicats, les bis­cuits, les pâtés et les tourtes, les farcis, les jambons, les per­drix, las faisans, etc., le tout n'est que pour faire de merde mâchée." (Palatine)

Ao que, dias depois, sua tia lhe respondeu:

Vous ne connaissez guère les plaisirs, puisque vous ignorez ce­lui qu'il y a à chier...De toutes les nécessités à quoi la nature nous a assujettis, celle de chier est la plus agréable; on voit peu de personnes qui chient et qui ne trouvent que leur étron sent bon... Si la viande fait la merde, im est vrai de dire que la merde fait la viande... Est-ce que dans les tables les plus délicates, la merde n'y est pas servie en ragoûts... Les boudins, les an­douilles, les saucisses, ne sont-ce pas des ragôuts dans des sacs à merde? La terre ne deviendrait-elle pas stérile si on ne chiait pas... Manger et chier, chier et manger... Et l'on peut dire qu'on ne mange que pour chier, et qu'on ne chie que pour manger... Quando vous avez tant déclamé contre le chier, vous aviez chié dans vous chausses.. J'espere qu'à présent.... vous demeurerez d'accord qu'on ai­merait autant ne point vivre que de ne point chier." (L'Electrice)

Dessas epistolas entre duas cagonas e das próprias neces­sidades pessoais, concluímos que não se pode, de maneira nenhuma, ter uma visão sectária ou maniqueísta da questão fecal, e que a mais pura verdade, é que o «ato» humilha, diminui, coloca sob o tapete a vaidade humana. E tanto isto é verdade, que o famoso Huxley até recomendava, como técnica para superar a timidez, imaginar o outro, aquele que nos intimida, de cócoras na privada. E Montaigne, o livre pensador Montaigne, assegurava que por mais potentosa que seja a pose e por mais delirante que seja o espetáculo do Poder, a autori­dade, o chefe, o patrão, etc, está sempre, e acima de tudo, sentado sobre seu cu e sobre sua bosta.

Usada com os mais diversos objetivos na história da humanidade, não apenas a bosta e o mijo do homo-sapiens, mas de diversos outros animais foram recomendados para curar quase todos os tipos de doenças. Desde uma simples dor de dentes, à epilepsia, aos males da gota, da angina, do câncer, etc. Sobre esse tema, o Dr. C.F.Paullini's, escreveu na Alemanha do século XVII, o curioso texto intitulado: A farmácia da merda , no qual prescreve, de di­ferentes formas, o uso medicamentoso do estrume. Outros pretensos sábios, talvez já adeptos da xilomancia exploraram a possibilidade de conhecer o passado, o presente e o fu­turo dos homens através de uma análise de seus intestinos (escatomancie). Também os mágicos, os bruxos e os curandeiros aproveitaram a merda para suas curações caseiras e até mesmo Paracelso, o alquimista-mor de todos os tempos, que sempre quis transformar cascalho em ouro, dedicou parte de suas pes­quisas na tentativa de fazer as fezes adquirirem um odor mais agradá­vel. Pelo cheiro corrente dos peidos e das latrinas, fica patente que seu intento não deu certo.

Evidentemente, não passei o ano inteiro trancado em pri­vadas, nem espiando o comportamento de seus freqüentadores. Apenas dediquei ao assunto parte de minhas "meditações" e de minha acidia, re­colhi o material disponível nas livrarias, nas bi­bliote­cas, nos W.C, nos museus parisienses e fui in­troduzindo-o digerido nos textos do dia-a-dia, quase como se estivesse pro­duzindo uma agenda ou planejando um caramanchão. Pensei: se o Borges, o Graciliano, o Gramsci, o Genet, o Dérrida e tantos ou­tros capuchinhos «obraram» sem parar e publicaram sistematicamente suas divagações, suas alei­vosias, suas memórias, e seus stronzos, por que eu não poderia, literalmente falando, editar a minha "merde"? Que a temática faça os leitores xucros, ignorantes e excrementófobos torcerem o nariz, isto já está previsto, pois o olfato é, segundo minha própria vivência, um dos sentidos mais ligados aos registros subterrâneos do inconsciente.


A palavra remete à imagem, a imagem remete ao cheiro e o cheiro contrai os músculos do rosto, fazendo o nariz se curvar para o lado e fechar as narinas, porque tudo o que é escatológico é tabu, e porque "todas as palavras que mencionam coisas excrementícias têm que ser pronunciadas em surdina, em tons abafados, quase indefinidos. As sonoridades claras, nítidas, fortemente descritivas que os "palavrões" suscitam são completa­mente banidas. Na realidade os seres humanos civilizados formamos uma hipócrita confraria que faz de conta que os homens e mulheres que dela fazem parte não têm cu, não soltam peidos, ignoram o que é a merda ou a bosta, e, claro, nunca cagam". São inúmeras as pessoas que entram em crise quando descobrem que todos, absolutamente todos ao seu redor, cagam. A conhecida Sabina Spielrein, -por exemplo-, aquela que foi amante de Jung e cúmplice de Freud, relata que na sua infância, costumava sentar-se sobre o calcanhar, de forma a tapar o cu, impedindo a defecação até por duas semanas.

Entre os autores que dedicaram em seus trabalhos, uma atenção especial à merda, posso citar, por alto, só para dar uma idéia, (entre gregos, romanos e egípcios antigos, bem como entre pensadores e artistas da modernidade), uns 200. Entre os mais conhe­cidos e mais santificados encontramos: Aristóteles, Homero, Kant, Hipócrates, Swift, Santo Agostinho, Sade, Bataille, Barthes, Plinio, Chevallier, Freud, Norbert Elias, Dali, Duchamp, Céline, Gide, Dante, Petrônio, Le Corbusier, Helvétius, J.Prévert, Sartre, Aragon, Francis Bacon, Lutero, Montaigne, Frank Zappa, Erasmo, Simone de Beauvoir, Fellini, Rabelais, Kundera, Dino Buzzati, Ferenczi, H.Miller, Vargas Llosa, Laporte, Guerrand, Monrozier, etc, etc. Sem falar naqueles que, execrando ou não, produziram textos específicos para o teatro, poesias ou Manifestos tratando desse mesmo assunto. O que importa verdadeiramente saber é que a merda não é apenas a merda, mas também, para os otimistas, um sinal, um signo e uma evi­dência do divino, e para os pessimistas, uma chama e uma profecia do apocalipse. A verdade é que se a merda não levasse em si um segredo metafísico e um enigma humanista, a do Grande Lama do Tibete não seria santificada e ingerida pelos beatos; os egípcios não a identificariam com seus "deuses" maiores e os polinésios não usariam seu nome para batizar os filhos.

Uma criança que em Samoa é conhecida e responde pelo apelido Merda de Tungo -por exemplo-, como poderia ser bati­zada aqui?

Merda de São José? Merda de Jeová? Merda de Exú?

Em outras palavras, a criança que nasce, lá ou aqui, é sempre merda de um ou de outro ser transcendental, um pequeno e vivo excremento tanto da mãe carnal como da mãe terra, ambas ori­gina­das do excremento e destinadas a voltar a sê-lo. À sua maneira, a criança, e os nativos parecem ter consciência de que a vida é gerada, se não no meio, pelo menos ao lado dos intestinos e do material fecal. Dizer meu íntimo, na verdade, é dizer minha merda, minha obra original e morna. A história da criação, vista também deste ângulo, é uma epopéia, uma grandiosa e inequívoca sinfonia ao sexo e ao estrume. Quem ama e deseja, tem amor e desejo também pela merda do ser desejado, e tal­vez, até, seja exatamente ela que cria o clima romântico, educado e singelo entre os amantes. Nada identifica e assemelha mais dois seres sexualmente comple­mentares do que essa necessidade ao mesmo tempo solitária e universal. A pederastia, nesta linha de pensamento, seria o quê? Uma forma de veneração, não do cu e sim daquilo que ele excreta, o que transformaria inevitavel­mente o pederasta num tipo novo de coprófago, numa espécie de vira-bosta, como aqueles insetos que se encontram à sombra dos chiqueiros, e cujo xamã seria o Marquês de Sade? Vícios e gostos à parte, o certo é que se a merda tivesse algum valor, com certeza o cu não seria, como afirma o psicanalista Arango, a linguagem preferida da submissão.

Coprofagia! Esse nome pomposo identifica na psicologia aquelas crianças carentes e aqueles adultos psicotizados que costu­mam comer merda, seja por paixão, por gosto e prazer, ou simples­mente para debochar dos psicó­logos ou dos psiquiatras constipados. O demente ou a criança que chega a essa prática, no fundo, não estaria reinventando um ritual primitivo e reestabe­lecendo no seu cotidiano um menu que já foi até terapêutico e sagrado? Apesar de parecer um vício estrambólico e uma patologia evidente, não poderia ser apenas um gesto essencialmente idêntico ao de excretar a merda, princi­pal­mente se considerarmos as reais identificações que existem entre o buraco oral e o bu­raco anal? E aqui, apenas por curiosidade e para confundir um pouco os lei­tores, vale a pena lem­brar daquilo que em 1908 Freud denominou a Teoria da Cloaca. O especulador vienence usou essa expressão para referir-se ao imaginário infantil, onde subsiste a idéia de que a mãe só tem uma cavidade e um único orifício confundido com o cu. Idéia esta, cuja lógica obriga a criança a acreditar que os bebês (e ela própria) são "evacuados" como um excremento, uma merda. (Laplanche J. Pontalis, J.B.)

Mas minha verdadeira intenção não é descer ao nível psicológico ou filosófico da questão, (porque tudo o que ne­ces­sita método me causa horror!). Gostaria de pu­blicar apenas imagens, fragmentos, fotos e gravuras, (uma espécie de Rorschach popular ou de teste projetivo) de tudo o que se relaciona aos intestinos, às toilettes, aos urinóis e à merda, (essa matéria que os antigos Nahuas colhiam no traseiro das formigas para usar como depilatório), e deixar que o observador, o iconomaníaco ou quem quer que seja, por si mesmo, em total liberdade, projete nelas o seu próprio texto e sua própria caca, suas memórias, suas náuseas, nojos, ansiedades, vaidades e tudo o mais que normal­mente dá fôlego e potência ao narcisismo, a essa necessidade patológica de contemplar e de amar a si mesmo antes de todas as coisas, como se se valesse, se durasse e se soubesse mais. Essa necessidade alucinante de postar-se diante dos espelhos, de dormir sobre os penicos, de recitar os próprios textos e de fumar a fumaça dos próprios peidos, é uma estratégia remota de nossa espécie, uma tentativa, senão de negar, pelo menos de justificar-se como uma máquina que engole, que digere e que excreta. Os 60 cm que separam o buraco de entrada do buraco de saída, e os vários metros de tubos por onde percorre o material em transformação, têm causado mais indignação e mais ansiedade aos homens que todos os tremores de terra e que todos os dilúvios. A raízes da depressão e da angústia não encontram terreno mais fértil do que este, e é ali que todos os sa­beres poderiam encontrar respostas para algumas de suas dúvidas. Narcisismo = atenção exclusiva e fixação afetiva a si mesmo, não necessaria­mente para amar-se, mas inclusive para poder destruir-se, desconstruir a imagem de si-mesmo que tremula lá no fundo do líquido amiótico, ou na superfície de uma lágrima casual, odiosa e falsa como uma moderna e cara bijouteria thailandeza. Enfim, para despedaçar num só momento, o espelho que reflete e os olhos que captam o reflexo.

É essa forma, ora explícita, ora camuflada, que tento apresentar aqui, ao mesmo tempo em que faço uma reverência ao ilustre escargot, esse animalzinho asqueroso e delicado que, apesar de alimentar-se de merda, era para os egípcios a efígie perfeita do melhor dos mun­dos, a imagem do sol, de Isis, de Osiris e do próprio Universo. Por hoje é só. Que as Graças de Cloacina, a Deusa romana das privadas, nos alivie a todos!

Fragmento do livro Toilettes e Guilhotinas - Paris 1994
Ezio Flávio Bazzo